Papáguia

Data 20/06/2020 05:52:19 | Tópico: Contos -> Minimalistas

Da conversão



A Papáguia é uma ave feroz, de média estatura. Omnívora e negra, como a fome.
Como ser mitológico, os outros tinham o mau gosto de compará-la aos outros seres vivos, neste caso, aos outros pássaros.
Então, quem visse semelhante criatura, cria-se ser o único da espécie, sem nunca chegar a estar em vias de extinção, uma vez que é eterna. Além dessa crença, dir-se-ia que era metade papagaio, metade águia, quer pelo aspeto quer pelo comportamento.

O bico recurvo podia ser de qualquer um desses. A penugem de nenhum delas, mas talvez pela mesma, pudessem assumir que havia nele a astúcia do corvo.
Não era de roubar como esses corvídeos.
Nisso a águia ganhava por larga escala.
O que tornava o seu ar, figura de ficção, era que em vez da cauda de alguma das aves com que se assemelhava à mistura, tinha um rabo de rato, Branco.

A sua dieta predileta e seleta, era outras aves que gostassem de ser comidas. Mas também adorava frutas, que sacava das árvores tropicais, o seu domínio.
O seu vício, contudo, era inconfessável.
Ia para as margens dos rios, furtiva, em pleno sol, catar carne putrefacta de crocodilos, que o aguardavam para aquecer o gelo sanguíneo.
Via-se, recorrentemente, a enxotar às bicadas a ave-do-crocodilo, que os cientistas chamam de Pluvianus aegyptius. Achava-lhes uma certa graça pela coragem e por não gostarem de ser comidas.
Além destes hábitos alimentares amalucados, era um bicho que partilhava com o Homem e com o papagaio um dom, a palavra maiúscula.
E com o corvo, vá...
Um palavrar sem veneno. Tinha pouco de cobra. Era sonora, quando lhe convinha. Premeditada, talvez, mas sempre leal e, por vezes, incorreta.

E, apesar de adorar voos rasantes junto aos troncos das árvores tropicais, era quando voava em altitude que era graça, e graciosa, e, não tenhamos medo da palavra, feliz.
O seu voo em altitude tinha uma particularidade insuspeita, como o rabo não tinha fisionomia para servir de leme, as suas asas e os músculos do tronco, tinham um desenvolvimento fenomenal.

Além de recitar poesia épica do mundo árabe, Ibn Mucana era o seu preferido, e “as histórias dentro das histórias”, tinha o grito. Arma de arremesso.
As suas garras aquilinas eram o instrumento de voo e aproximação.
Em casos invulgares dum crocodilo acordar e fechar as mandíbulas, o rato em si sabia fugir de medo, outra sua arma poderosa.
Quando não conseguia, entrava o terror em si. Demoníaco.
A halitose era o seu poder, o seu sobrenatural. O seu bafo, fabricado não sabe como, só podia ser coisa de alquimia. Havia, certamente um alquimista dentro de si.

O único animal que lhe provocava um medo antigo e pouco explicável era o leopardo. A cor escura da pelagem. O facto de caçarem os crocodilos que lhe alimentavam o vício. Havia sempre algo no seu rabo que se agitava, como num sismo, assim que se achegava.
Coisa de predadores.

O seu inimigo natural, era qualquer cria de preguiça. Pior que os adultos, era um bichinho minúsculo, que nada temia, imperturbável e castanho. Lento.
Nunca pensaria caçar uma.


O calor da selva era um elemento que abusava em seu favor. Quase tão importante como a humidade.
Desde o ninho, de origem desconhecida, que era o seu lar.

Num dia como qualquer outro, mirando peça de caça, num voo alto e montanhoso, teve um encontro inesperado.
O derrube que sentiu, vindo do vento, desconcertou-o quase até à fúria. Nem o vira chegar, áspero e quente.
Com um ar conhecido, mas um temperamento desigual ao que lhe sabia.

Quem és, perguntou o Papáguia.
A resposta veio primeiro num assobio que lhe aqueceu e arrepiou as penas. Depois pareceu-lhe ouvir uma voz, a murmuro-gritar, Noto!
Noto, num repete.
O vento sul concluiu, quando a incredulidade se instalou no passaroco.
Recomposto, usou do bafo para dominar o vento, que sorriu e o devolveu com uma insípida brisa.
Continuava o passiforme aos tropeços no alto, usando a força que tinha para evitar a queda livre. Mas assim que se equilibrava, investia contra o vento como se o quisesse caçar, de garras afiadas agarradas ao vazio. E do vento, nem um desvio.

Numa gritaria pegada começou a dar recitais e recitas, primeiro trovas, depois sonetos alexandrinos.
Acabados os Lusíadas e todos os poemas da histórias dentro das histórias, o vento ventou mais uma rajada, que o entonteceu. Livrou-se à última do chão e o Papáguia escondeu-se, com o rabo Branco encolhidíssimo.

A toca era sua. Suja de penas e patas de restos.
A tontura deu-lhe um medo novo e terror. Esteve para não voltar a sair ou voar. O medo da morte é superior ao da fome, até que a fome seja a própria morte.

De fora, como se não bastasse a esgana, ouvia o vento num uivo e num vem, vem, vem, ecoado talvez apenas na sua cabeça, cheia de penas escuras.

Aprendera desde novo a voar contra o vento, para caçar os que voavam ao seu sabor. Mas isso era com o vento outro. Às tantas era como o sabia. Nunca voara ao favor do vento.
Pôs-se a pensar como tudo seria mais fácil sem aquele rabo. Alvo. Tubular. Era só abrir as asas e deixar a cauda fazer de leme.
O seu rabo nunca lhe obedecia!

E o vem do vento a ser silêncio.

Ao fim dum temporal valente, a fome mais obscura toldou-lhe a razão.
Armado de medo como um rato, saiu à selva, às copas das bananeiras, uma manga, por favor, e sempre o Noto, nome grego dado ao vento sul, o atirou ao chão, sem o ferir.
Numa das quedas, o vento aparou-lhe a queda a pique e uma das asas contorceu-se, instintivamente. No meio da suavidade teve a revelação. Como se estivesse sempre ali, à mão, ou asa, vá...

Ganhando novo fôlego, o Papáguia enfrentou o vento que recrudesceu e elevou-o mais alto do que alguma vez fôra.

Noto e o Papáguia tornaram-se amigos.
Sempre que aparece na selva, a de rapina convida-o a entrar.






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