Encontro

Data 27/08/2020 02:31:32 | Tópico: Contos -> Romance

Ele caminhava pela rua em meio ao movimento vespertino no retorno das pessoas de seus trabalhos. Mãos nos bolsos para afugentar o frio úmido que se refletia na calçada, ainda molhada pelas ultimas gotas de chuva, caída meia hora atrás. Seguia em frente, olhando à sua volta os rostos apressados, olhares distraídos e narizes apontados para o horizonte.
Seus pensamentos vagam, pois ele não tem destino naquele momento. Apenas caminha para se distrair, tomar um ar e mudar a rotina dos dias que passou fechado em casa.
Ela voltava pela última vez daquele trabalho, estava cansada de sua rotina e desejava mudar. Caminhando na direção do metrô, olhava as pequenas poças d'água que ainda resistiam pelo caminho e pensava agradecida pela chuva ter parado - não levara o guarda-chuvas quando foi, pois tinha algumas coisas para trazer. Tinha a cabeça cheia de planos e dúvidas, já que as coisas estão bastante diferentes.
O destino sempre move as peças sobre o tabuleiro, nos seus intrincados desígnios como num campeonato de ases do xadrez que admiramos sem entender. É assim na maioria das vezes quando tudo vai se sucedendo e parece agir contra as impossibilidades.
O moleque que vendia balas em meio à multidão correu para atender o cliente habitual que o chamava diante da Casa de Sucos da Esquina. O chão escorregadio contribuiu para que o garoto esbarrasse nela, fazendo com que a caixa que carregava as balas caísse no chão. Destino igual tiveram os envelopes que ela carregava.
Ele se abaixou de pronto para recolher os envelopes caídos e os pacotes de balas. Como agiu por impulso e estava ainda distraído, ameaçou entregar um e outro trocados, mas rapidamente corrigiu o movimento, tirando sorrisos dos presentes.
Ambos trocaram sorrisos com uma leveza inusitada para o momento que cada um deles estava passando. Nenhum deles estava em uma situação emocional confortável e, para dizer a verdade, não tinham muitos motivos sinceros para sorrir com desprendimento nos últimos meses. - "Obrigado tio" ressoava a voz infantil enquanto o garoto ia se afastando para enfim vender um pacote de balas. Quase eles não ouviram, pois seus olhares - além dos sorrisos - também acabavam de se cruzar.
- "Obrigada" - ela disse a ele.
Ela não precisou erguer muito o rosto para olhá-lo nos olhos, eles eram quase da mesma altura.
- "Não necessita agradecer" - respondeu ele. "Não fiz nada".
- "Oh, sim. Foi gentil, ajudou-me e ao garoto".
- "Você não sabe como fazer algo útil, afinal, me fez bem, depois de tantos dias com tão pouco a fazer" - acrescentou ele.
E continuando, ainda juntou: - "Talvez, eu que deva agradecer, foi providencial parar aqui porque estou querendo tomar um suco, aceita"?
- "Sim". Ela aceitou sem demorar muito para responder. Estava estressada e tomar um suco seria uma boa sugestão para desanuviar. Conversar um pouco sem compromisso, falar do tempo e de coisas amenas antes de voltar para casa e para as conjecturas indispensáveis ao novo projeto.
Não foi coincidência ambos pedirem um mesmo suco.
Ele que costumava ter os cabelos cortados curtos, os tinha bem mais longos, pois não tinha ido cortá-los por causa das restrições de movimentação. Tinha os olhos de uma cor enigmática que oscilava entre o castanho claro e o verde dependendo da iluminação do ambiente.
Os olhos dela eram castanhos e vivos, embora não fossem grandes. Seus cabelos dourados emolduravam uma face harmoniosa e simpática que mesmo nesse momento de preocupação não se fazia transparecer.
Poucos minutos de conversa bastaram para suas afinidades se apresentarem e agigantarem. Gostavam, faziam e tinham expectativas semelhantes. Tinham alguns objetos idênticos e estiveram muitas vezes nos mesmos lugares e horas. Passaram por situações onde certamente era impossível que não tinham se visto. Mas não era o momento, não ficariam juntos, pois cada um tinha seu compromisso.
Agora era diferente, nenhum dos dois tinha compromissos pessoais e é aí que a maestria da jogada do destino se faz mostrar: Se não se viram em todas as vezes anteriores, e certamente já estiveram na mesma sala, foi porque não era a hora de se encontrarem.
Percebo que a esta altura, todos já devem ter compreendido o alcance dos atos do senhor destino.
Foram feitos um para o outro e cruzaram seus caminhos por diversas vezes, mas por motivos outros não adiantaria se encontrarem. Então seus olhares foram desviados, mas não hoje, não agora, não desta vez.
Bastou-lhes um olhar para se reconhecerem como almas gêmeas e terem a certeza que suas vidas, de fato, começariam a mudar.
Não viram o tempo passar, mas ao sair, seguiram juntos, de mãos dadas, bem depois que o movimento de pessoas já tinha acabado. Para selar seu encontro, decidiram dançar um tango, mesmo na rua, agora deserta, enquanto deixavam suas sombras, felizes, deslizarem refletidas no chão.




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