Não canto nada que não seja ...

Data 21/04/2008 10:12:57 | Tópico: Poemas -> Amor

Não canto nada que não seja
o amor
num poema diferente de cor rosácea e branco
candura sitiada entre
a voz da terra se que escorre ambiciosa
no veio escuro do tempo
e a garganta onde
o grito
se solta ávido
e revolto
se grito a profeta fome
das mulheres que habitam setas na carne do teu peito
e se aninham fêmeas a medo e a custo
sem toque outro que não seja
d’arpas
d’alaúdes
d’liras
no delírio confesso
de serem elas próprias
todos os instrumentos
acordes finos
senão gemidos, de violoncelos,
de violinos.

Não, não canto mais que não seja a dor,
o desencanto
o abandono
e a eterna
busca do pigmento da tinta
que imagino exista
na alma espalmada do ser autista
o espaço vazio entre o arco e o alvo
o dardo que espeta o musculo uterino
de um corpo.

Do amor
canto o poema contínuo o plano sem tino
o sangue sangrando
velas pandas por dentro de si:
o esquecimento
o coral distante distinto
no mergulho insano
na apneia em espanto…

Espanto-me e
imagino um poema como uma árvore
um baloiço de ramos
um fruto supremo
suspenso
maturo
macio
suculento
e um chão por baixo rectilíneo, plano,
calafetado a seda verde no verde das folhas
e quente, na febre dolente das vagens
na fúria das águas
antes
e, de novo e sempre, sem anúncio prévio as chuvas chegam
em bátegas profundas em quedas maiores
e retalham os riscos
e molham os gritos
onde escrevi
amor.

Não, não canto nada que não seja rastros
de mim e de bichos, de insectos alados, de flores e de rosas
e mariposas,
lacraus famintos e ínfimas formigas
polvilhados em luz
em baba
em lúmen
rastilhos na noite de vaga-lumes
num jogo d’enredos de boca saliva e língua.

E cantando ouso viver.


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