JULIANA

Data 04/06/2021 16:00:52 | Tópico: Contos

Desde os tempos em que desembarcou de Portugal, não tive mais notícias dela. Tinha se tornado praticamente uma estranha aos meus sentidos.

Tomei um grande susto quando atravessei a avenida e dei de cara com ela me espiando firme, recostada no muro da secretaria de agricultura. As pessoas passavam ligeiro e isso dificultava um pouco a visão. Ela se contorcia, como que se estivesse driblando os transeuntes para abrir o raio de observação. Um tanto surpreso e apreensivo, gentilmente, me aproximei, estendi-lhe a mão e cumprimentei: "Olá, como vai?" Preguiçosamente, ela espichou o braço me pegou o pulso com a mão esquerda e com a direita completou o cumprimento, acariciando minhas mãos e sorriu: “você está bem?”

Por uma fração de minuto, conectamo-nos através de um profundo cruzar de olhos, até que, desprendida de forma quase que automática nos mergulhamos nos braços um do outro e por alguns instantes ficamos envolvidos numa candente carícia nos alisando pelas costas. O impacto do encontro vazou a incerteza do que se passava ali, e do que poderia vir a acontecer desde então.

As portas do Rosário estavam abertas de pouco, e o afluxo de clientes ainda era fraco. O sol deitara-se não fazia muito tempo e o retorno dos que trabalhavam no centro começava a se efetivar.

Entramos no ambiente com iluminação meio no lusco fusco. A essa altura nossos corpos já se fundiam, enlaçados que estávamos nos braços um do outro, ato que se cristalizou no curto trajeto da praça até a boite. Sem demonstrar estranheza, sem qualquer resistência, ela me acompanhou, e assentiu com a cabeça, quando eu disse que ia ao toilete. “Me espere um minuto querida”

Mergulhei no quartinho insalubre, ardido do aroma ácido e fedido de urina, enquanto ela aguardava. Passado o desaperto voltei ao salão envolvi os braços ao redor de sua cintura e falei: “podemos ir, meu bem?” ela balançou a cabeça, afirmativamente e saímos. Atravessamos a rua e, no passeio, do outro lado, à sombra da fumaça dos veículos que roncavam na avenida, ela se estacou e com a mão me pressionando o peito e disse de forma taxativa: “me espere, vou buscar o meu isqueiro, que me tomou emprestado, Zé Romão!”

Foi-se.

Atravessou os paralelepípedos, alcançou o passeio do outro lado, entrou no Rosário, e no embalo das notas do bolerão, que efluíam da vitrola iridescente fincada no canto do salão, deslizou feito uma pluma no passo de dança, rodopiando, sob os mimos do gajo espadaúdo, que lhe beijava o cangote. Devia ser o Zé Romão, e eu balbuciava, para os meus fantasmas: “Juliana... Juliana...”

Wagner M. Martins – 01/05/21



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