tríptico da virgem – painel central

Data 17/06/2022 08:08:14 | Tópico: Poemas

em memória de paula rego

às vezes ainda regressa
com o carinho cru
da parturiente cheia
de mãos vazias
acomodando brasas
sobre os mamilos

porque se esquece
de cor
dos anjos que seguraram
as pernas abertas
à espera da sarça sempre
ardente da mais estúpida
verdade errando
pelos homens de onde se elevam
as primeiras estrelas de um
brilho puerilmente
negro

trago-a sempre comigo
de um gole só
responde-me com a forca
delicada dos braços
e trinca-me o crânio
do tamanho da sua boca
pois apenas nos é dada a conhecer
a ternura dos abandonados

diz que nunca

mas há sempre um dia
em que nos cruzamos
com aquilo que somos
com os berços mijados
as saias arregaçadas
a sinfonia dos acamados

houve tempos em que parecia
o espectro da montanha
o gigante de mim mesma
tão longe como um círculo de cores
sem falsos silêncios
antes um segredo
lambendo-me as orelhas

hoje tenho de ser eu
a limpar-lhe a saliva
esquivando-me às dentadas
a colocar-lhe a mão
dentro das cuecas
a sussurrar o nome
de cada uma das feras
com quem se deitava
atrás da tela

sempre foste das aves
e decerto sabes
uma ou duas coisas sobre vertigens
e quedas
por isso diz-me se te lembrares
qual o preço
certo desta montra final


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