A FORÇA DOS EUFEMISMOS

Data 20/09/2022 21:54:00 | Tópico: Crónicas

O brasileiro nasce cristão, a maioria celebra – ainda na tenra infância – seu batizado. Depois tem por direito (dever no que depender dos familiares mais fervorosos) confirmar essa consagração inicial por sua vontade própria. É bem verdade, porém, que há as inúmeras deserções quando se começa a pensar por si mesmo ou crê-se na ilusão de fazê-lo – o que quase sempre coincide.

Frequentei de forma assídua a igreja, fui católico a rigor, principalmente, ali nos meus primeiros anos de vida. Típico morador do interior encontrava nas missas semanais a oportunidade de visitar o centro da cidade, evento que de outras formas acontecia com raridade. Ou seja, desde cedo fui apresentado a gama de eufemismos utilizados para evitar os ultrajes propriamente ditos. Tornei-me perito em eufemismos bíblicos, xingamentos adornados de bênçãos, desde essa época, quando necessitava de tais atos solenes para apresentação dos meus grandes dotes naturais, do tipo chutar latinhas em praça pública. Exercício de paciência, autocontrole e, em algum nível, também, arrependimento – arrependimento para os pais por não conseguirem ser mais incisivos nas broncas em momentos específicos (o que aqui poderia significar algumas cintadas).

A cerimônia funcionava descomplicada, crianças do lado de fora da igreja correndo desesperadamente como se o mundo fosse acabar, e os pais rezando pelo mesmo motivo. Acontecem, no entanto, dissidências bélicas quando reunidas inúmeras delas num único ambiente, pois pequenos gestos descambam para o conflito. Ainda mais em discussões mortais do tipo "quem está no pega?". Magricelas, feito eu, carregavam a função específica, já inerente ao arquétipo de bode expiatório, de canalizar no próprio corpo a frustração dos rebentos maiores com toda a delicadeza de socos e pontapés.

O ambiente, tal qual se espera, era avesso aos palavrões, dos quais ainda trazia pouca fluência, confesso. Mas em mim, feito em toda criança, pulsava o sentimento transgressor suficiente para me fazer arriscar, no alto e bom som, “Putz grila!”, prontamente repelido com o cortês sinal das mãos – um tapa tão forte que marcou cinco dedos pelas minhas costas. Não tendo forças para o revide contra o iminente agressor, justo defensor dos bons costumes, aproveitei-me de certo distúrbio na força, a raiva me tomou por completo e revidei na cautela de escolher outro menor. A satisfação pessoal ruiu à primeira lágrima da vítima. Arquitetei rapidamente o plano de fuga – plano infalível – correr. Correr até me tornar um borrão indiscernível na paisagem. E lá fui eu, depois de quatro voltas, na primeira respiração ofegante, eis o dedo em riste e o berro abençoado ressoando aos ouvidos: Amado de Deus!

Se o brasileiro já nasce mesmo cristão assim como presumo, é preciso dizer: naquele instante eu tive a confirmação da vocação. Não fosse a casa de Deus, estaria numa enrascada gigante. Deu tudo certo, hoje faço proveito dos eufemismos, permaneço longe de encrencas como bom covarde, e tento – ao máximo – utilizar as palavras para ser fator de soma. A boca diz aquilo que o coração está cheio, afinal.


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