Quando eu me for deixo-te, meu filho Bem mais que aquilo que um dia herdei As cicatrizes de ter passado intempéries Que são signos do que pude aprender São o teto que abriga na tempestade Cuida-as na memória, um dia te servirão
Deixo os labirintos que me refugiei A evitar os tumultos e os rancores Nos acertos deixo o meu consolo Nos erros, o meu aprendizado Deixo além das asas, a rosa-dos-ventos A uma emplume-as, da outra rompa os limites
Mas o melhor que tenho a deixar É saber bem usar verbos e pontuação Saibas não há flores sem boas raízes E a borracha será a amiga nas tentativas Deixes seus restos acusatórios sobre o papel Escrito, apague. Reescrito, perdoa afinal.
Saibas que não falo da sede, mas da água Pois é esta que entende e acolhe aquela Porém, não me pertence o mar navegado Já que este é solidão, deixo-te os remos Também a esperança que o vento te assista Testemunhando teus caminhos, porto a porto
Deixo ainda umas poucas palavras que sei Que são o legado de ter somado as letras Com minha inafastável fé nos dicionários Túmulo do silêncio, esse mau conselheiro Deixo a luz a revelar a inocência e a crueldade Chama-se poesia, será a tua vez de a decifrar
Deixo-te a ideia que só o amor vale a pena Se por vezes é a dor, tantas mais é o bálsamo Não ouças se um dia falarem mal de mim Pois tudo pode ser somente a verdade Deixo-te, afinal, mesmo à minha revelia A glória e a maldição de ter sido poeta
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