O Último Sonho de Scrooge

Data 19/12/2022 22:28:11 | Tópico: Textos -> Natal

Tinha Dickens acabado de escrever as duas opções que teria Ebenezer Scrooge e ele, sentado na sua velha poltrona que já se moldava ao corpo contorcido, metade pela idade, outra metade pela avareza, deixara-se adormecer. As mãos tremiam-lhe ainda graças aos encontros com os três fantasmas do Natal, as pernas… nem as sentia, bambas e sem força desmaiavam-se ali pela sala em frente do resto da carcaça. Os olhos, por medo, resistiam a fechar-se ainda assim não aparecesse um quarto fantasma, mas o peso era imenso, aquelas pálpebras traziam em si toneladas de preocupações, emoções, incertezas, receios.
Aos poucos o sono prevalecia sobre as inglórias investidas dos receios incrustados na mente. Finalmente cedia, o olhar profundo e fixo que ia forçando sobre a janela da sala dava lugar a uma imagem interior a que se juntavam outras e outras, Scrooge também sonhava.
O seu sonho começava com uma lágrima seguida de um sorriso, era o passado e o presente da sua relação com o pequeno Tim, com Bob e sua esposa. à medida que o sonho ia avançando, Scrooge sentia-se constantemente observado e, ali, repetia as suas acções três e quatro vezes para evitar erros e algumas punições dadas pelos perversos espíritos que agora o acompanhavam. Mais um ou dois xelins para Bob, dois talvez fosse melhor, um médico para Tim e o prazer de saborear as sopas pobres da esposa de Bob. Mas nem tudo eram boas notícias, como em todos os sonhos há sempre um lado negro, e Scrooge sempre teve alguns defeitos que estavam intrincados em si, eram como rugas ou cicatrizes persistentes. A tentação de alimentar a sua avareza dificultava-lhe tudo o resto.
No sonho estavam dois de si, dois Scrooge, a falar com Bob, um dava-lhe dois xelins a mais no ordenado e o outro cobrava-lhe esse valor. Dois Scrooge a falar com Tim, um a tratá-lo como um neto e outro a desdenhá-lo como a um pobre. Ambos a deliciarem-se com aquelas sopas de gente pobre. Entre a lágrima e o sorriso de Tim as duas versões de Scrooge duelavam entre si, as armas de cada um eram as palavras, um pedia perdão por ser avaro e outro acusava o primeiro de fraqueza, a loucura proliferava, matava-se por dentro. De que valia mudar, pensava ele nos intervalos do sonho, ou por que razão devia continuar assim, um ser tinhoso, sem nada em seu redor.
Scrooge não mudou, adaptou a sua forma de estar a uma nova realidade.


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