E morreu sem me mostrar o ninho de melro que achara

Data 06/02/2023 12:27:54 | Tópico: Textos

Do pouco que me lembro dele, vem-me à lembrança o cigarrito ao canto da boca feito dos restos aproveitados de beatas que vinham de Lisboa. Visto que tantas por lá, atiradas ao chão e com tanto tabaco ainda por queimar. E ele cá com o vício e o dinheiro da jorna tão pouco!
De maneira que uma encomenda de vez em quando que a Ti Isaura, que morava na rua da Achada e trabalhava numa perfumaria da baixa, nos enviava pelo sr. Américo Peras que vinha aos fins de semana. E lá dentro, além das amostras de perfumes que cheiravam a cidade, caixinhas de plástico redondas com desenhos dourados e com um espelhozito na parte de dentro da tampa e na outra parte o pó de arroz cor de tijolo, uma manada de ganchos envernizados que nos davam um jeitão para segurar o cabelo de modo a não estorvar nos olhos e, às vezes, também de outros que, depois de postos, pareciam fivelas doiradas a enfeitarem a cabeça. E uma vez até uma boneca quase do meu tamanho e com a qual nunca me deixavam brincar por causa de não a estragar. Ainda por lá anda, vestida com o vestido do baptizado da minha irmã, sentada numa cama a enfeitá-la...
De maneira que, ao lado dessas coisinhas mimosas e pouco habituais na rudeza da aldeia, vinha também um saco de beatas para matar o vício do meu avô!
Creio que devia ser por causa disso que lhe doía o dente - ó Maria Augusta, olha que eu tapei-te lá a poça na Despresos como me disseste. E tapei-a bem tapadinha! Se tiveres aí um bocadito de aguardente... É que tenho aqui um dente que me não deixa em paz - E a Maria Augusta a levar-lhe o cálice de aguardente para ele curar o dente e ele a engoli-la em vez de bochechar só. Tirando isso, era um pobre diabo.
Tal como me lembro de tantas coisas da minha avó, também parece que o estou a ver a ele, a tirar a carta das mortalhas, cor-de-laranja, do bolso das calças com mais remendos do que calças, e a deitar-lhe o tabaquito. Enrolava-o nos dedos e um fósforo a riscar uma faísca na caixa...
Outras vezes, encontrava-o de enxada ao ombro no regresso do lusco-fusco, com o cigarrito ao canto da boca, a dizer-me qualquer coisa como daquela vez que me revelou ter encontrado um ninho de melro com três ovos lá dentro, ao mesmo tempo que me mostrava o tamanho dos ovos no dedo indicador (olha que são deste tamanho assim).
Haveria de o encontrar pela última vez a minha mãe, quando, no dia seguinte de manhã, a caminho da "Despresos"... Lá estava ele, caído nas lajes da "miséria", perto do poiso onde se costumava encostar a descansar um bocadinho, sem largar o molho do mato que trazia às costas.
Bem que lá fui à cata do ninho na tal parede do "Covão", onde ele me disse que estava, mas não encontrei ninho nenhum. E eu sem lhe poder perguntar o sítio exacto porque ele já sem me poder lá ir mostrar.

Cleo


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