Pequenos retalhos de memórias gastas

Data 15/02/2023 19:16:33 | Tópico: Textos

Ás vezes, vêm-me à lembrança pedaços de coisas que, vá-se lá saber porque motivo, me escaparam ao túmulo do esquecimento. Restos como as aparas que cobriam o chão da oficina do meu pai, depois de este ter estado a plainar tábuas para uma qualquer cabeceira de cama, gavetas de uma cómoda que lhe tivessem encomendado, portas de guarda-vestidos ou até mesmo um tampo de mesa elástica durante a tarde toda, visto que da parte da manhã a serra eléctrica não parou por quase tempo nenhum. E quando a serra a roncar endiabrada durante horas, a plaina seguia-se-lhe quase sempre. Primeiro a eléctrica e depois, para as minúcias da perfeição que lhe obrigava a arte, a manual a dar os retoques de precisão. Para cá e para lá, até a lisura se lhe apalpar nas pontas dos dedos da mão que de vez em quando lhe ia passando a verificar se já chegava de plaina ou não.
Ou como aqueles retalhitos de tecido que se amontoavam de igual forma no soalho da salita da costureira e que eu costumava ver de cada vez que lá ia tomar a prova de algum vestido novo. Não encolhas a barriga - dizia-me ela - porque se não o vestido fica-te apertado na cintura e depois não cai bem. Alfinetes a segurarem dobras e eu a contar de me picar neles quando me roçavam a pele nos movimentos das provas. Mas não me lembro de me ter picado alguma vez, de tantas vezes que foram, à razão de um vestido novo sempre que alguma festa ou casamento o exigia. Eu vinha-me embora e os retalhitos lá ficavam enrolados em linhas a atapetarem o chão à espera que alguma vassoura os empurrasse dali para fora. Haveria de ser a Ti Alice, quando já não tivesse tanto aperto de trabalho, mas por hora, quase nem tempo tinha para se coçar, visto que as festas à porta e as moças a carecerem de vestidos novos para levarem à missa e à procissão!
Quanto às aparas de madeira expulsas pela lâmina da plaina do meu pai, não tinha outro remédio se não o de ser eu a ter de as varrer para a montureira de cachiço e serradura que de Inverno servia para enganar a salamandra, apesar do fumo... mas que se Verão, lá carregava, contrariada, de pazada em pazada para o carro de mão (e o atrelado que se lhe seguiu também não era melhor) que pesava mais do que eu na hora de lhe pegar, rumo ao vazadouro da "barroca das ametades", um bom bocado ainda, para lá da "Eira-Cabeça". Isto num tempo em que ninguém se preocupava com poluições e qualquer traste de que era preciso desenvencilhar-se ali tinha o seu fim como destino. E por ali ficava anos, até alguém lhe despejar um cascalho em cima...


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=365876