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 Dez Sonetos da Guerra da Crimeia parte trêsData 24/02/2023 22:00:25 | Tópico: Poemas
 
 |  | 1. A preto ou Branco 
 
 
 Lembra-te que sou um sacana sem medo
 e além de sacana, sou um cabrão.
 Se nos meus encostas um só dedo,
 sentirás o peso todo da minha mão.
 
 Conhecerás todo o meu avesso, o meu degredo,
 um caralho cheio de tesão,
 universos inteiros de pus e de azedo;
 se só com um dedo tocares um meio-irmão.
 
 Essas merdas, sei-as todas, o mal é todo meu, torturas
 por desenhar, sou arquitecto;
 deixa-me quieto
 
 e às minhas curas.
 Faz de mim o que te apetecer, até teu escravo.
 Mas com o teu dedo, as mãos lavo.
 
 
 
 2. Azulejo em pó, é só juntar água
 
 
 
 Já guardei um tijolo dos destroços,
 está num monte à minha espera
 com vidros, azulejos e a primavera
 e sangue, carne apodrecida, ossos...
 
 Se fizer, à mão, um castelo e fossos
 com esse entulho, onde antes era
 um país, uma pátria, uma fera,
 onde se bebia de tantos poços,
 
 ou posso construir, repetir pontes,
 de mais tijolos de outros montes:
 um quebra-cabeças decapitado.
 
 Neste eterno e escurecido inverno,
 nas mãos apenas guardo o inferno
 e todas as pontes sem o outro lado.
 
 
 
 3. Triste cancro
 
 
 
 Eu evito pensar, juro que evito,
 nas células do corpo, com demónio,
 que de Ramsés ao santo António,
 habitam tudo, como eu habito.
 
 De canto em canto tudo vomito,
 estrago, desfaço, sou babilónio,…
 e se uso apenas mais um neurónio,
 tudo implode, queima, fica frito…
 
 Arma em punho
 sangue na foice,
 força faz a guerra!
 
 Vão testemunho
 viver de coice…
 Tumor da Terra.
 
 
 
 4. mutismo
 
 
 
 A guerra já acabou na Crimeia,
 na televisão e nos cabeçalhos.
 Um ano de bombas e mortalhos
 ao almoço, ao jantar, à ceia...
 
 Mas, sem dúvida, o que mais chateia
 é fechado no cabo dos trabalhos.
 O sangue, a morte em retalhos,
 o conforto, sem fim, de quem a ateia...
 
 Mas, já se acabou isso tudo.
 Nem mais uma linha se escreva.
 Se não se falar ninguém repara.
 
 Mais um fulminante se dispara,
 Mais um vivo a morte leva.
 Falta-se-me a voz. Fiquei mudo.
 
 
 
 5. paz é descanso
 
 
 
 Em Kiev não há domingo há anos,
 nem todos os outros dias de feira,
 o tempo a nada se abeira,
 nem para ontem haverá planos.
 
 Os lugares são para os insanos,
 a morada só na algibeira;
 abre, finda da mesma maneira.
 Só espaço para contar danos.
 
 É a Ilíada e seus aqueus,...
 o mundo não se farta de morte,
 é de Homens do diabo.
 
 Tudo gente sem destino, nem deus
 que de tão fraca, passa por forte.
 ao fim e ao cabo.
 
 
 
 6. O segundo porquinho
 
 
 
 E cais mais uma vez no caos,
 sempre a achar que é demais.
 Quer lhe chames porto, ou cais,
 é onde vais, nas tuas naus.
 
 A demanda vã por mil vaus:
 torpe desculpa porque sais.
 De menos és, e porque vais.
 Bombas atónitas de paus.
 
 Prego, sem dó, o vazio;
 que o cheio nunca chega
 esse buraco sem fundo.
 
 Atravesso este rio,
 de jangada que navega
 com todos os paus do mundo.
 
 
 
 7. Livros aos quadradinhos
 
 
 
 Parece que, agora, na história,
 nos livros das escolas da Rússia-mãe
 os meninos russos da memória
 aprendem que é a Ucrânia que vem
 
 invadir a Rússia. Cultivam desdém,
 até ao império ter a vitória.
 Mas guardarão o que vivem também.
 Não vem em livros a palmatória
 
 que chega com toda a mentira.
 Há de reinar o medo, o pavor
 dum sistema que tudo pode.
 
 Se ensina o que se respira,
 ensinará algum dia o amor?
 Quando será que a bomba explode?
 
 
 
 8. bombinhas de mau-cheiro
 
 
 
 Para ir da Ucrânia ao Sudão,
 é perto, basta irmos de guerra.
 Com tanta paz criada na Terra;
 sempre em frente, não há confusão.
 
 Não há guerra por pedaço de chão
 que não desfaça: o feitor enterra.
 Acertado pelo punho qu'erra,
 o tratado assinado, sem mão.
 
 Raspas e bombinhas de mau-cheiro
 à venda nas lojas da esquina
 onde fazem o troco em notas
 
 de rodapé, bitcoin, ou dinheiro.
 Chama-se guerra e s'assassina.
 Não há vencedores, só derrotas.
 
 
 
 9. barragem vazia
 
 
 
 Barro com o teu nome as luzes,
 pinto d'escuro a escuridão
 e deixo às cegas a minha mão
 com a grita mole que produzes.
 
 Agarro o brilho que tu luzes
 e sinto puro o que no escuro dão;
 e mexo, toco as pregas em vão,
 pregos no caixão, engole, não uses.
 
 Sou um guardador, dor de vazios
 dentro do peito, cheio de nadas;
 dolente que passa o passo dado.
 
 Esse nome é lago e não rios,
 esse brilho é águas paradas.
 É para o que fiquei guardado.
 
 
 
 10. Solidão Bombardeada
 
 
 
 O tempo ele caleja, castiga
 e o seu castigo é o calo.
 O seu fado a isso o obriga,
 sina de ser só um intervalo.
 
 Nem assim a memória é amiga,
 que insiste, dó, em magoá-lo;
 calo que não sente. Há quem diga
 que à memória o tempo igualo.
 
 Não fere a dor, a guerra alheia,
 não magoa no quintal vizinho,
 somente no tempo inda novo.
 
 Não será já o mundo uma aldeia,
 onde parece que estou sozinho?
 Porque não escreve o meu povo?
 
 Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
 A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não.
 
 
 
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