Por vezes, aos domingos também se ía à praia das Maçãs...

Data 22/03/2023 10:54:57 | Tópico: Textos

Em 1951, a minha mãe tinha nove anos de idade e vivia com a sua mãe e irmã na terra onde nascera. Murganheira, uma aldeia da freguesia de Pombeiro da Beira no concelho de Arganil e mesmo ao pé do santuário de Santa Quitéria, que, naquele tempo, seria já bastante concorrido por alturas da festa anual.
Como o berço onde nascera era dos mais pobres que se possam imaginar, foi com essa mesma idade que uma prima a levou consigo para Lisboa, com promessas de uma boa casa, para a qual iria servir e ganhar algum dinheiro para ajudar no sustento do lar. Não sem antes disso, ter de trabalhar para essa prima enquanto a dita casa não aparecia... De modo que, contando-me mais tarde quando se proporcionava em conversa, de uma vez, trazia ela uma bilha de leite à cabeça, pesadíssima para o seu tamanho e fraqueza de corpo, e vindo a descer uma rua cravejada de penedos escorregadios e com tão fraco calçado nos pés, estes lhe desandam de tal modo que não teve como se segurar. Nem a ela nem à bilha, caindo ambas desamparadas e a pés juntos, no chão. E o inevitável a acontecer mesmo na frente dos seus olhos impotentes, ao verem derramar-se o leite que, a manchar de branco os penedos lisos da rua e de negro a sua alma em aflição.
Dado que as desculpas não serviriam para a livrar, ainda haveria de levar uma tareia por se ter deixado cair...
Algum tempo depois e tendo já ao seu cuidado várias tarefas domésticas, ao recolher os pratos da mesa dos senhores no final da refeição, tendo estes comido maçãs à sobremesa porque as cascas a regressarem nos pratos e ela a vê-las ali e uma vontade de comer maçã a crecer-lhe na saliva da boca. Mas como as maçãs a não serem para os dentes das criadas, lavou as cascas e estas a saberem-lhe tão bem como se fossem maçãs inteiras!
Mais tarde, depois de tudo já devidamente arrumado e de ter feito um pedaço de renda para a patroa e outro para o seu enxoval, o cansaço a fazer com que adormecesse na água quente da banheira até acordar com ela já fria, no desconforto do corpo gelado.
Houve casas onde havia também crianças de colo a carecerem de quem lhes desse atenção quando os pais não estavam. De quem lhes mudasse a fralda, que nesse tempo eram de pano e lavadas à mão. De quem lhes desse a papinha na boca e colo quando chorassem...
Ao domingo podia sair e ir dar uma volta com alguma amiga, que geralmente eram colegas que a mesma sorte fizera com que se conhecessem no mercado, onde iam comprar as coisas que cozinhavam nas casas onde serviam. Em certa ocasião até foram à Praia das Maçãs. Embora não tivessem fato de banho, nem vestido nem por vestir, não deixaram de tirar um retrato para mais tarde recordar... Lá estão elas a sorrir de contentes, no areal da praia num dia cheio de sol.
Ou então, optava por passar a tarde do mesmo domingo em casa de alguém conhecido, penso que familiar de não sei quem e onde o destino quis que por ironia ou não, viesse ali a conhecer aquele com quem haveria de construir uma nova vida, longe de patrões e senhores cheios de salamaleques e outros tiques burgueses, onde coubesse também a nossa.
A minha vida dava um romance, dizia-me ela. E dava, de facto.
Fim do primeiro capítulo!

Cleo


Foto - O retrato de que falo no texto, na praia das Maçãs ali pelos primeiros anos da década de sessenta do século passado, sendo que as jovens sentadas na areia seriam a minha mãe(à direita) e a sua amiga e colega de desdita e cujo nome se perdeu na espuma do tempo...


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