Clementina de Jesus ou Mãe Kelé, como queiram

Data 06/05/2008 15:24:21 | Tópico: Poemas

um dia na redação da Folha de SPaulo

me pediram

no espaço que eu tinha

que dedicasse uma crônica à Clementina de Jesus

uma empregada doméstica

já velha

cuja voz foi o último lamento da senzala

vergonha para o povo brasileiro e português

pela escravidão que perpetraram

Clementina não cantava

nêga véia nos ninava tranqüilamente

como se nos pegasse a todos pelas mãos

a nos cantar o canto triste de uma África distante

"Não vadeia, Clementina

Fui feita pra vadiar"

o samba estava na sua alma de conga ferida

pela covardia de nós homens brancos

Mãe Kelé foi um sonho

metida em seu vestido branco com as contas

do seu orixá no pescoço

tinha os olhos distantes de quem não viu a pátria

de origem por causa de um maldito porão de um

navio negreiro

eu não escrevi a crônica no dia

nem me lembro sobre o que escrevi

saindo do jornal me pus a chorar

maldita senzala

maldita escravidão

hoje

tanto tempo depois

peço perdão Mãe Kelé

e escrevo:

"Não vadeia, Clementina..."

aliás vadeie por nós aí no céu

ou em Aruanda

o céu do seu povo

_______________

júlio, inédito


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