A OBRA PELOS PÉS

Data 10/04/2023 23:36:51 | Tópico: Crónicas

(Versão revista, com pequenas correções de estilo, crônica originalmente postada no Jornal O Novo em 23 de Novembro de 2021. Disponível em: https://onovo.com.br/lucas-luiz/a-obra-pelos-pes)

Através da literatura torna-se possível conhecer outras condições possíveis ao homem, sem às quais seria demasiado limitado o seu horizonte de realidade. E assim se deu o meu primeiro contato com uma obra narrativa – embora não percebesse tamanha inocência da idade.

A atração, bem verdade, fez-se instantânea por tratar-se de um universo familiar à minha infância; todas as forças imaginativas existentes em mim confluíam em direção ao futebol. Desde disputadíssimas pelejas entre os mais variados objetos: isqueiros, tampinhas, brinquedos de super-heróis (sem nenhuma malemolência, vale a ressalva) e os próprios dedos (esses ágeis feitos os anjos de pernas tortas). Passando pela expansão mental deste universo, para clubes com sedes (caixas de sapatos) e países inventados, contando com negociações milionárias (a cotação atual do dinheiro de Banco Imobiliário em nada faz jus a essa época áurea) e um craque: eu; até as partidas reais com os amigos reais pelos campinhos do bairro.

Daí a conexão com “Uma história de futebol” ser irresistível. A narrativa gira em torno da amizade de Zuza e um tal Dico, que, por obra do destino, viria a tornar-se Pelé. Mergulhei de cabeça no enredo ao ponto de sentir as emoções dos personagens como fossem as minhas. E, de fato, eram. Também, eu, conseguia conduzir uma bola com competência, ao menos naquele contexto micro, do quarteirão. Para depois aprontar traquinagens do tipo roubar poncã direto do pé.

Vivi cada parágrafo com o entusiasmo de um biógrafo ao conseguir informações valiosas já perdidas na memória do biografado. Tratava-se de Pelé dando os primeiros passos tais quais os meus. Então, por que não sonhar o mesmo destino?

Afirmar que eu não tenha virado nenhum fenômeno é dar cabo ao óbvio. Os anos engoliram-me essa quimera. Nem tanto os anos, a realidade implacável. A necessidade de aceitar-me sem autocomplacência e aprender a cavar sob os próprios pés. Mas de tudo ficou-me a valiosa lição em retrospecto: viver cada leitura como uma extensão das probabilidades da existência para ampliar a própria consciência.

A transição em nada foi-me custosa: na imaginação encontram-se todas as sementes. Os meus gols mais bonitos jamais os fiz, mas sei ainda persegui-los.



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