Meu neto, Filho meu!

Data 24/05/2023 16:10:15 | Tópico: Poemas









Meu neto, Filho meu!





Num baile da vida
Tímido num canto
Uma voz terna
Às minhas costas falou:
Dance comigo essa música
Pois estou à deriva
Preciso de paz,

E dancei rodando o salão
Com a dama mais bela
A dama de lilás,

E nossa tristeza passou
Naquela noite vazia
Em sutis olhares
O vírus do amor
Em nossos peitos se hospedou,
E muitas vezes com alegria
Dançando na rua me via
Meu passado fora apagado
Minha vida virou show

Fez-se sentido meu sonho de moço
Vislumbrei o futuro
Fugi do fundo do poço,
Alguns meses depois
Ela já estava em casa
Lavando minha roupa
Fazendo meu almoço,

E pegou suas coisas
E uma coisa
Tão secreta me revelou:
Tenho um guri
Que vou resgatar dos avós
Ele é minha vida
Nunca fui santa
E por preço baixo o fiz
E por ser solitária o quis
Quando perdida eu vagava
Seminua nas ruas
Oferecendo-me como meretriz...

E me trouxe o menino
De rostinho latino
Cabelinho negro
Sorrisinho inocente
Falhinha no dente
E tagarela
Costelinha à mostra
Muito comportadinho
E tão magrinho enfim,
Por um instante chorei
Pois lembrei de mim
E meu sobrenome em cartório
E uma festa familiar
Eu dei...

E fui criando o guri como filho
A pão de Ló e milho,
Era jogo de bola
De búrica, damas
E esperas na escola,
Dia e noite um companheirinho arrumei
E a três quantos aniversários
Feliz com eles comemorei,
Ele me chamava de pai
Como eu chamava o meu de rei...

E sem saber do destino
Não pude dar-lhe um irmãozinho
Era estéril fiquei sabendo
Mas, pela graça divina
Não teria que repartir o carinho
Deus sabe o quanto suei
Pro meu mocinho
Um dia
Ser um "dotô" da lei...

Mas um dia me veio a notícia
E meu filho me disse:
'todas as aulas da faculdade encabulei',
Corri pra cadeira do fundo
E em silêncio chorei
Me perguntando
E perguntando
Pra saber onde errei
Se lhe dei o amor que não tive
E quantas horas extras
Sem forças
Em passos trépidos
Por um ideal eu firmei...

Soube que meu guri por vergonha
Vivia nos bailes
Nos bares da vida
Prostituindo-se sem cerimônia
Que vivia de porre
Rondando as rodinhas de maconha,
E que arrumou uma mocinha
E saiu de casa
Foi viver de favores,

E ele que foi tão amado
Carregava consigo
Todas nossas dores...

Já não vinha mais sentar na cama
Ouvir minhas histórias
Meus conselhos sem drama
E de novo chorei e chorei
E pelo desprezo dele
Os meus braços eu cruzei,
Ele não sabia o quanto eu sofria
Vendo-o sofrer por aí
Chorava um pai
Sofrendo o dobro daqui,

E em rememórias sorrio
Pelas peças que a vida nos dá
Tinha a melhor mulher
Que meu mundo criava
Mas já não tinha
Um espelho pra sonhar...

Há uns anos atrás
Consegui me aposentar
E às vezes meu netinho
Vem me visitar,
Já não tenho saúde
Pra com ele brincar
Esperá-lo na escola
Ler uma estorinha
Que lia a seu pai
E pegá-lo no colo
Pra fazê-lo ninar...

O sangue que vazava
Do meu peito
Um dia estancou,
O meu filho perdido
Num emprego se firmou,
Dei um recadinho
Pra vir me visitar,

E me recordo bem do que escrevi:
Seu velho já o perdoou
Que o amava demais
E mesmo definhado
Amor no meu peito restou...

Fiquei tão feliz
Quando meu filho voltou
E empurrando minha cadeira
Aos lugares que eu o levava
Me levou...

E apertado me apertei
Como última tarefa de vida
A faculdade de meu neto
Mais do que pude ajudei,
Sou um homem sem luxo
Que um dia prometeu
Dar o que não tive
A um filho meu...

E um dia meu neto
Aos 21 anos
Em casa apareceu,
Olha vovô meu diploma
Com o sobrenome
Que o senhor me deu,
Minha velha e eu
Choramos ao bom Deus,
A fé me deu de paga
Todos os esforços meus.

O que se leva da vida
É ver o que passou,
O que meu neto
Fez por meu filho
Minha história contou,

E vi no meu neto
Meu filho
Dizendo-me sou "dotô",
E lembrei do baile
Da dança
E do garoto magrinho
Que um dia me chegou


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