Pode-se amar uma pedra, um peixe no anzol, um bicho da maçã

Data 08/05/2008 20:22:16 | Tópico: Crónicas

Estou ao pé da vertigem, espreito lá para baixo e, há um homem subindo.
Podia contar ou mesmo revelar que este homem que vem subindo, subindo como réptil ferido foi alguém que previu o seu futuro e, atirou-se na condição de apagar todos os dias de amanhã.

Mas, melhor será não entrar em sentimentalismos barrocos e passar à análise crítica da queda. Um homem, 45 anos, divorciado por natureza, organizador de eventos, apaixonou-se pelo seu melhor amigo, lançou-se à vertigem e logo arrependeu-se. Ninguém canta melhor a morte do que um mocho, alguém sabe o que ele diz?

Estou numa arábia deste mundo onde existe um precipício que serve de morada gratuita para quem sofre. Não tem de se inscrever em lado nenhum, basta escolher o lado da pose pretendida que a morte tira logo retrato sem cor.
Eu só vim cá ter porque me contaram que há crianças que se atiram por não gostarem de brincar com armas. As crianças (sou eu que falo) não deviam imitar os homens até aos vinte e cinco anos. Que nunca sejam navegadores de uma deriva!

Estou ao pé da vertigem, demorei muito para aqui chegar, fintei lobos e corvos, subi às árvores para evitar ser janta de animal medonho, colhi flores sem me importar se tinham dono. Esta terra é vermelha, tingida de lava quente, só quem tem bombo a martelar na cabeça é capaz de cá chegar. Pum pum pum. Todos os dias pum. Todas as noites pum pum.

O homem pede-me que lhe atire uma corda mas ele devia saber que neste lugar só deus é que tem corda, só ele pode interferir no salvamento. Está escrito assim: o arrependimento da morte custa mais que um hotel de luxo no paraíso. Logo, o homem terá de subir pelas suas próprias garras.

A sua voz a chamar, em eco desfeito, rota sonorização, bate nas rochas e devolve-lhe à garganta um sabor a pasto de animal.
O homem apaixonou-se por um homem e assim que pensa nele, deixa cair as calças. Pode-se amar uma pedra, um peixe no anzol, um bicho da maçã, mas não se pode amar alguém do mesmo sexo. Alguém se lembrou desta. Mas o homem quer voltar a amar uma mulher, fazer de novo tranças a começar na nuca dela, envernizar unha e alma dessa dama d’onor. Por isso é que ele quer subir à terra e mostrar que está pronto para a criação. Duas meninas. Diz que quer. Duas meninas. Uma de cada cor.

Estou ao pé da vertigem e o homem está ao pé daquele que está ao pé da vertigem. Chegou cansado com a língua voltada para trás. É horrível a ginástica que a língua faz quando chora uma criança por exemplo, ou, quando um poema fica por acabar durante anos.

A salvação é a face clara do arrependido. Salva-se sem ter que rezar em demasia. Por isso é que o verdadeiro Senhor não aceita esmola. Uma palavra chega.
Sente a brisa na face apesar de não haver brisa, tudo é metafísico, as coisas que parecem passam a ser, é fantástico este lugar onde os mortos se misturam com os vivos.
O homem está quase de fora, esgotou as possibilidades do corpo e do sangue, pede-me uma mão. A lei é dura: o arrependido tem de vencer por si próprio.
É nestas alturas que penso que deus havia de dar uma volta e ir beber um copo ou conhecer Lisboa pelo metropolitano. Hesito. Dou não dou.

Eu vim ao precipício porque às terças não há estreias no cinema (desculpa minha). Eu vim aqui porque sou homem e, como homem que sou tenho um número de identificação que substitui o meu nome.

Aliás, todos os homens possuem uma senha guardada no coração. Ninguém quer falar disto mas é verdade.
Tenho um homem a pedir-me a mão, que faço? Demoro-me e ele cai pelo esquecimento do precipício? Ou dou-lhe a mão desobedecendo assim à lei? Qual a lei do amor? Se uma pedra é capaz de se reproduzir, que dizer das lágrimas deste homem que suplica por uma mão minha.
A verdade: eu vim a este precipício porque eu amo este homem. E você, o que veio cá fazer?



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