Meu pai bateu-me quando fiz o primeiro poema

Data 11/05/2008 22:27:22 | Tópico: Crónicas

Todo o homem precisa de uma história para contar. Uma história que seja melhor do que aquela que o outro acabou de contar. O romancista tem esse papel: de contar histórias que nunca viveu, criar vítimas, sanguinários, cobardes, pisar o sangue.
- Na tropa dei um tiro no pé de um sargento.

Para ele é uma medalha que transporta na memória. Dar um tiro no pé a uma sargento não acaba com a guerra. Todos os homens são estúpidos quando estão a dormir.
Um:
- Na guiné dei um pontapé nos tomates a um preto.
Outro:
- Eu estive no coração de Amesterdão e mordi a cabeça de um touro.

A história dos povos é feita de personagens que conquistaram e varreram o mundo à base da espada e da flecha. Fizeram-se países, delimitaram seus territórios com carne falecida. Nenhum homem é herói quando está a defecar.

Um agricultor deu uma sacholada na mulher e põe a culpa no demónio, nesse bicho vermelho que tem cornos e unhas para agarrar.

Os jornais falam de casos extremos em meia dúzia de caracteres. Eu tenho uma história para vos contar: a menina foi atropelada após ter sido violada. Não consigo contar mais do que isto.
A menina fica sem história para contar e na escola vão reparar que ela escolha sempre a carteira do fundo.

O escritor tem o hábito (ou vício) de imaginar e criar circunstâncias. Para ele a estratosfera não é o que os astronautas dizem. Nem com provas ele acredita.
A estratosfera é um lençol azul que vai escurecendo, escurecendo.
Depois há que criar o estilo e aplicar a metáfora de acordo com a luz.

Meu pai bateu-me quando fiz o primeiro poema, lembro. Tinha cinco anos quando fiz vinte riscos numa folha e disse-lhe que era uma flor. Bateu-me novamente. Quase não lembro. Pratiquei atletismo, subi ao pódio e puseram-me duas noites no curral.
Esqueci.
Todos os homens têm uma história para contar, principalmente às sextas à noite, que é quando entre eles cada um paga uma rodada, o absinto faz calor e no sábado ressaca-se.

O sábio fica em casa a prometer solução, um filho espreita da janela do trigésimo andar e dá-lhe cá uma vontade de experimentar o voo, a água da cafeteira desaparece porque subiu-nos à pele um desejo de amar a esposa que está a dar o biberon ao filho, um amante rodou a chaves do carro e o carro explodiu. Os minutos são contas mal feitas.

Em sessenta segundos apodrece o amor, passa de ouro a latão, numa décima de segundo o bombista aperta o botão. E é que aqui que nos despedimos. Estás a ver por que não conto?



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