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 Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte cincoData 15/06/2024 19:11:40 | Tópico: Poemas
 
 |  | 1. vê 
 
 Na mão não há vê de vitória,
 os dedos foram todos amputados.
 Nos dedos dos pés não há agrados.
 Não consigo contar a história.
 
 Falta-me a voz, dedos, memória;
 minas e balas de baleados,
 de sobra. Cotos envergonhados,
 doridos, onde fica a glória?
 
 Um vê que faço, braços abertos,
 a cabeça a estragar o desenho.
 Mais parecido com um duplo vê.
 
 Vê a dobrar, os olhos incertos
 da miopia, que agora tenho.
 Nada vejo, sinto, não sei porquê.
 
 
 2. Placas ou parafusos
 
 
 Há placas a mortos em cada esquina,
 na baixa aquosa de Veneza,
 há nomes em fila sem beleza,
 pelos vistos, nada se ensina.
 
 Têm uma data que as domina,
 uma luta em cada chiesa
 ao lado duma vela acesa.
 1914-1918, alguém assina.
 
 Só cem anos depois, na Crimeia,
 ainda se mata, se odeia…
 Esqueçam, desistam, não há mão nisto.
 
 Em Gaza, no Sudão, ou em Troia
 alimenta-se a paranoia.
 Eu, não desisto.
 
 
 3. Lua Velha
 
 
 Dia sim dia sim mais um funeral
 de vala comum, sem sequer comunhão,
 já não há espaço qualquer, neste chão,
 para fazer um enterro normal.
 
 Nada de normal tem isto, é distal
 e tão perto do peito, do coração
 que tenho no lado direito, na mão...
 que já não bate de maneira igual.
 
 Fez-se noite, uma escuridão de pó,
 sem estrelas, sem lua em quartos,
 sem mesa posta para tomar a ceia...
 
 Nada fica inteiro que não fique só,
 tudo é sem. Sem dó, de guerra fartos,
 a lua sempre velha, nunca cheia.
 
 
 4. Parada Ausente
 
 
 Já fui chamado de camarada,
 agora sou apenas um soldado
 sem solda, ainda que parado
 sem batalhão, vida, nem parada.
 
 Então, deserto, faltei à chamada,
 sou cidadão, pai, filho deste fado;
 das margens deste rio frio nado,
 para qualquer lado daqui se nada.
 
 Fiz a incontinência ao cabo raso
 a saudação à saudade da paz.
 Fiz silêncio debaixo dum grito.
 
 Cada dia que passo é um atraso
 nesta parada que já não se faz.
 Um chão falso em que habito.
 
 
 5. Fraco Capitão
 
 
 Eu disse ao meu general que não,
 não era mais capaz de fazer isso,
 que me perdoasse o compromisso,
 sou arte de guerra, fraco capitão.
 
 O meu tenente anda com um carão
 descontente, o major é omisso.
 Os coronéis murchos e sem viço.
 Não há quem aprenda esta lição.
 
 Sou objeto repleto, um objetor;
 a consciência que tinha, não tenho
 e sinto um vazio tão completo.
 
 Tiros aos pratos, tiro-lhes a cor.
 Cacos e cacos, do chão apanho.
 Aperto o cinto, miro o teto.
 
 
 6. Mágua
 
 
 Já fui cruzado, sou um herege,
 depende do lado da batalha;
 perco sempre que sempre calha
 que a morte no campo me elege.
 
 Em cada vida, não me protege
 a armadura, a cota de malha...
 O kevlar quase só atrapalha
 apenas a promessa me rege.
 
 Prometi proteger matar defender...
 sobrevida é o que me sobra
 na terra, no ar, paraquedas na água.
 
 Já estou certo, apenas, sem querer,
 a minha alma nenhum deus cobra.
 Sou mágoa.
 
 
 7. Reduções ao Mínimo Múltiplo Comum
 
 
 Os voos rasam perto a cidade,
 cresce o ódio em cada esquina,
 cresce tanto que só se imagina,
 os voos voam sem velocidade.
 
 O silêncio entra e tudo invade,
 reduz a esperança já pequenina;
 não há música, risos de menina,
 o ar, o sol, têm ar de grade.
 
 O passo que conheço, é o fantasma,
 ou o tambor poluto da explosão
 (não tenho memória do meu meio).
 
 Respiro, entre ataques de asma,
 sem os meus momentos de inspiração.
 Expiro este ar que tanto odeio.
 
 
 8. recruta
 
 
 Já matei mais um, vi-o a cair,
 a bala bateu secamente, dura,
 durante a queda sem estrutura,
 morte violeta, já sem porvir.
 
 Esse monstro que mostro, sem me rir,
 tombou, coisa fraca, não se procura,
 acabou na terra, esterco, agrura,
 orgulho que me calha, flor a abrir.
 
 Ninguém me avisou na recruta
 do perfume a pólvora, a grito,
 do quanto ele inebria, vicia.
 
 Esta dependência pura, bruta,
 hábito perverso que habito,
 O meu pão nosso de cada dia.
 
 
 9. bivaque
 
 
 Pediram-me a auréola do santo,
 mas sou todo feito de vil pecado.
 A santidade mora mesmo ao lado,
 mais do que risos, conheço o pranto.
 
 Estacionado de pelotão ao canto,
 espero pelo tão infinito brado.
 A luta, sem metáfora, é o fado
 e de terra desfeita é o meu canto.
 
 Se o ataque é a melhor defesa,
 nunca sei muito bem o que defendo.
 Será a defesa, o melhor ataque?
 
 Baioneta erecta, sempre tesa,
 sangue a escorrer, negro, ardendo.
 Não tenho auréola, só bivaque.
 
 
 10. Traumas da carabina
 
 
 no meio do mato o início
 carabina rente ao corpo a tremer
 e sob o céu de balas sobremorrer
 assim me dou ao sacrifício
 
 no fim da linha um precipício
 que ainda não acabei de fazer
 tremo na terra que me há de comer,
 um tremor de ódio, de hospício
 
 pesadelei pesadelos modernos,
 armadilhados,  sonhos, nem vê-los
 esperam-me traumas da carabina
 
 rezo para que não sejam eternos
 que só pesadelo tais pesadelos
 e contados, ninguém os imagina
 
 Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
 A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não
 
 
 
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