
A Vida não Cabe numa Teoria
Data 14/02/2025 14:46:24 | Tópico: Textos
| A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós. Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem. A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.
Miguel Torga, in Diário (1941)
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Há algo de inquietante na forma como tentamos aprisionar a vida dentro das palavras. Filósofos empilham teorias em bibliotecas severas, poetas tecem rimas na solidão de suas mansardas, teólogos buscam verdades absolutas entre paredes estreitas de fé. Tentamos nomear, organizar, compreender. Mas a vida escapa.
E então, num instante de distração, ela se revela. Não em tratados ou versos, mas na rude beleza do mundo: uma manhã nua sobre montes cobertos de neve, o calor de um cordeiro recém-nascido fumegando contra o frio, dois pares de olhos infantis, silentes e assombrados diante do milagre.
A vida não cabe nos livros, mas os livros nos preparam para enxergá-la. Eles nos aguçam o olhar, refinam o assombro, afinam a sensibilidade. Talvez seja esse o seu maior propósito: não explicar, mas despertar.
Que saibamos ler para além das páginas. Que aprendamos a habitar a vida como um poema — e a nos perder, de vez em quando, na imensidão do que não se pode dizer.
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