O Impostor - Um Livro Luso-Poemas - CAP IV - Sombras da Vigilia

Data 20/05/2025 21:04:16 | Tópico: Textos

O domingo havia afundado na noite.
E a madrugada chegava sorrateira, como um ladrão que se esgueira pelas frestas da casa, pelos vãos da janela, pelo coração inquieto de Cael.

Ele continuava imóvel no quarto, cercado por papéis rasgados, borrões que jamais se tornariam poesia.
O violão encostado no canto parecia morto, esquecido.
Na mesinha, a segunda garrafa já pela metade.
O estômago vazio, a cabeça zonza, e a mente… presa num labirinto sem saída, girando em círculos.

A paranoia era uma névoa espessa dentro dele.
Cael esfregava as têmporas, os dedos frios, tentando lembrar.
O que aconteceu ontem à noite?
Pegou o celular, tropeçando nos próprios pensamentos. Abriu a timeline.
Ali, um detalhe que fez o coração parar por um instante:
Uma corrida de Uber.
Treze quilômetros até o extremo da cidade, quase cruzando a fronteira municipal.
Mas… nenhum pagamento. Preço zerado.
Sem lembrança. Sem motivo.
A mente explodia em perguntas.

Ele colocou mais uma dose no copo, engoliu rápido, sentindo o álcool arranhar a garganta.
O sabor queimava, mas não aquecia. Apenas deixava um gosto amargo, espesso, colado à língua.

Abriu a galeria de fotos.
Nada. Nenhuma selfie, nenhum registro da noite.
Era impossível. Sempre que saía, mesmo bêbado, Cael lotava as redes sociais com imagens, stories, vídeos patéticos.
Agora… o vazio.
Como se a noite tivesse sido apagada. Como se ele nunca tivesse existido.

Nos cantos da casa, Pandora miava.
A siamesa, com a pelagem cinza suave, caminhava em círculos, as patas delicadas, mas inquietas. A marca escura em um lado do rosto e no peito destacava-se sob a pouca luz, tornando-a quase um reflexo partido, meio luz, meio sombra.
Ela miava para a porta. Chamava.
Cael verificou a ração, a água. Estavam cheios.
Então… o que havia?

Pandora miava mais alto, os olhos arregalados, presos à porta.
Cael ignorou.
Não era hora de sair…
Voltou ao caos mental, afundando-se na velha caixinha de memórias.

Primeira foto:
Ele, pequeno, um bebê no colo do pai, Adam. O único registro que tinha com ele.
O rosto sorridente do pai atravessava as décadas como uma lâmina. Cael não conseguia se lembrar, mas seu cérebro fabricava memórias, borrões felizes.

Segunda foto:
Os amigos da escola — Erick, Lucas, Wesley.
Os risos nos corredores, as brincadeiras, as quedas, os ciúmes, as garotas que ele se relacionava, todas lindas uma epoca de ouro.
Ele quase podia ouvir as vozes, os gritos abafados pela distância do tempo.

E então, a terceira foto.
Fernanda.
A memória rasgava-o por dentro.
Os passeios nos coretos, os parques, os beijos furtivos, os corpos colados como música bem ensaiada.
Cael conhecia cada detalhe dela como conhecia o braço do violão — onde tocar, onde vibrar, onde silenciar.
Agora, só restava uma foto, roubada da Bíblia da mãe, escondida ali como um sussurro do passado.

Os olhos de Cael ardiam. As lágrimas vinham em ondas, quebrando-se no peito.
Cada lembrança era uma lasca enfiada fundo, arrancando pedaços do que ele era.

Muito bêbado, Cael tentou guardar a caixa em cima do seu guarda-roupas.
Subiu na cadeira, os pés vacilantes.
Escorregou, caiu no chão, soltando um riso abafado.
— Tô muito bêbado, filha… você não ajuda seu pai… — murmurou, olhando para Pandora.

Mas Pandora não estava brincando.
Os olhos dela estavam fixos na janela, os pelos eriçados, o corpo tenso.
Cael sentiu um calafrio.
O que ela estava vendo?

Do lado de fora, um som.
Passos.
Arrastados.
Lentos.

Pandora se encolheu, orelhas baixas.
Cael engoliu em seco, tremendo.
A respiração ficou curta, como se o ar da casa tivesse engrossado, pesado demais.

Ele correu para a cama, puxou a velha Bíblia, as mãos tremendo tanto que mal conseguia abrir.
As palavras embaralhavam, a mente em pânico.

Lá fora, Thiago fechava a adega.
Sentiu um arrepio subindo pela nuca.
Montou na moto, pronto para ir embora.
Olhou para a rua.
Viu.

A figura.
Do outro lado, imóvel, diante da casa de Cael.
Um sobretudo negro, um chapéu grande demais, alto demais, que parecia dobrar a luz ao redor.
Parado. Sem rosto.

Thiago engoliu em seco.
Pisou fundo, acelerando, mas quando passou mais perto sentiu um peso esmagador no peito.
Como se o ar estivesse cheio de eletricidade, como se o mundo prendesse a respiração.
Ele não ousou olhar mais.
Fugiu.

Dentro da casa, Cael sentia a energia falhar.
A luz piscou. Uma. Duas. Três vezes.

O som.
Algo roçando a parede.
Como unhas. Como garras.

Cael correu até a cozinha, abriu as janelas, deixando a luz da lua entrar.
A claridade pálida banhou o chão.
Ele viu.

Lá fora, na penumbra, a figura se movia.
Roupas escuras. Chapéu largo.
O rosto escondido.
Mas… um sorriso.
Lento. Rasgando a sombra.
Grande demais. Antinatural.

O ar congelou.
Cael sentiu os pelos do braço se eriçarem, o corpo inteiro em alerta.
Ele tentou se mover, mas as pernas não respondiam.

O sorriso do lado de fora aumentava, como uma boca cortada de orelha a orelha, brilhando na escuridão.
Cael tentava entender se era um homem, uma mulher, ou algo que nunca deveria ter forma humana.

Então, a energia caiu.
Tudo ficou negro.

Na escuridão absoluta, Cael sentiu um sopro gelado no pescoço.
Um sussurro, vindo de dentro, de muito perto:

“Você não devia ter voltado, Cael…”


Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=377975