
Pokes e Hemingway
Data 22/08/2025 15:11:12 | Tópico: Poemas
| Trabalhei num restaurante que servia pokes, um lugar tão triste que até a sopa se sentava no canto da mesa a conversar com o Valter Hugo Mãe.
Durante dois anos comi demasiado edamame nos intervalos do Hemingway.
Aprendi a sorrir enquanto recomendava toppings entediados, ditava nomes inventados e biografias descartáveis.
Enganava-me sempre no nome do molho. Chamava-lhe Tchaikovsky e não teriyaki, e cantarolava baixinho o Lago dos Cisnes; e eu bailarina cansada de avental.
Os clientes pediam salmão braseado como quem pede salvação. E eu servia-lhes arroz e pressa, por vezes uma alface em plena crise existencial.
Às vezes pensava em escrever, mas o cheiro a Tchaikovsky entrava-me nos ossos, e até a língua parecia cansada de articular palavras.
No final do turno lia três páginas de Hemingway.
E tudo isto fazia um sentido desconfortável, como num livro de Gonçalo M. Tavares em que gestos banais são escalpelizados até se tornarem insuportáveis.
Depois da chegada do inverno abandonei os pokes. O frio entrava-me pelas mangas do uniforme.
Despedi-me, profundamente, dos pokes e de uma vida banal.
E tornei-me inverno para o inverno.
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