
Quem matou Salomas Salinas III
Data 04/09/2025 20:11:58 | Tópico: Textos
| 2
Andávamos lentamente impactados pela certeza do inevitável. Pessoas ensimesmadas, os automóveis em marcha lenta acompanhando o féretro subindo a rua dos Afogados. O turco do comercio da esquina da Fonte do Ribeirão, assou o grosso narigão vermelho e balbuciou alguma coisa ininteligível. Rostos entrincheirados nas suas angustias. Dobramos no beco da antiga Faculdade de Direito. O imponente Edifício Colonial e seus seis andares com suas janelas envidraçadas, as lojinhas do térreo, a cantina do caldo de cana com pastel, o hall dos elevadores usuários bem vestidos e comportados esperava-os pacientemente. A farmácia da esquina. A Rua do Sol, sem o sol tão necessário para iluminar nossas apagadas almas. Subimos na contra mão até contornamos na travessa da Passagem e saímos na rua da Paz. A paz que não existia dentro em nós. Um ônibus velho fumacento, barulhento e superlotado cortou a nossa passagem para o outro lado e uma garotinha sentada no colo da mãe da janela fez uma careta para mim. Tentei disfarçar a ânsia que queimava minha consciência, mas não consegui. Um guarda de trânsito apitou parando o trânsito. Eu e Karl aproveitamos e atravessamos rapidamente. Os pedestres apáticos, aparentemente sem remosos arrastavam-se a nossa frente alheios ao nosso drama. Uma sensação esquisita corroía o meu fraco ser. Aceleramos e viramos na Rua Candido Ribeiro, passando pelas Ruas Grande e a de Santana e entramos no grande estirão até a Rua das Cajazeiras – uma trilha segura para encurtar o caminho. - Meu peixe, tu já viu uma ‘peruana’? – perguntou-me numa manhã de sábado, na exígua cozinha da casa Karlniana na Praia do Desterro, onde apertávamos um bom ‘salomônico’. Pegou o baseado e sorveu-o com um aspirador de pó e despois soltou a fumaça pela boca e sugou -a pelas narinas atrás de seu farto bigode e depois de passar alguns minutos a expeliu novamente pela boca. O boné da Vale do Rio Doce com a insígnia de paraquedista na testeira. Os olhos ficaram vermelhos como duas enormes tochas e deu um riso débil. - E ai, gostou? Tenta fazer – e passou-me o cigarro pela metade, o cara era um verdadeiro dragão e ficou observando com aquele olhar maroto de chapado. Tentei várias vezes, mas não consegui, engasguei-me e tossi fortemente e ele rindo como uma criança diante de uma travessura. A velha rua Candido Ribeiro com suas singelas meia-moradas e moradas inteiras ao lado de modernas construções com seus antigos moradores debruçados nas janelas, olhando o cotidiano de todas as tardes e esperando a hora final. Os carros estacionados a a esquerda de quem sobe. Poucas pessoas na rua. Aqui e acolá uma senhora idosa bem trajada acompanhada por uma mocinha, um ancião de boca aberta cochilando sentado numa espreguiçadeira, perdido nas suas remotas reminiscências, balbuciando coisas sem nexos. Karl calado e circunspecto olhando para baixo. - Poxa, meu chegado esse neguinho é foda – reclamou de Karl certa vez na oficina. Parei meus afazeres para ouvi-lo melhor e estava irascível – Ontem cheguei fissurado na casa dele – e apontou para Karl que serrava um cano na bancada próxima – E ele com um senhor ‘baseado’, não é que o sacana, entocou e disse na maior cara de pau “Que nada, esse é para depois” – Karl sempre risonho, tentou-se defender, Salomas intransigente retrucou – Olha, neguinho filho da égua, eu te espero – ameaçou. O enorme casarão abandonado onde funcionou a Fabrica de tecidos Santa Amelia com sua alta chaminé de tijolinhos aparentemente ingleses. Um fusca descia a ladeira para a Fonte das Pedras e o mercado central. Cada passo marcado por uma luta intestina que relutava em não aceitar a realidade, mesmo com todas evidencias, assim mesmo ainda havia uma duvida idiota. Eu e Karl, ambos chocados com essa abrupta perda, pedíamos explicações aos nossos âmagos sentimentais; “Como Salomas morreu? - Não tem perigo de vocês caírem no mar? Perguntei-lhe uma vez enquanto sorvíamos ‘unzinho’ na sua enorme suíte numa tarde qualquer. Coçou o farto bigode e friamente explicou-me fleumaticamente: - Não há esse perigo – deu um ‘tapa’ profundo no ‘beck’, fechou os olhos e entregou-me – Primeiro fazemos um sobrevoo sobre o local, analisamos a direção do vento e para certificarmos soltamos uma “biruta”. - E o que é uma ‘biruta’? perguntei inocentemente e curioso depois de sorver a bicha. - E uma espécie de rolo com uma fita colorida que jogamos e ela desenrola-se como um papel higiênico. A sede do Jornal de Hoje com suas quatros janelas fechadas e a porta no meio delas, o Clube dos Sargentos da PM e a casa da esquina onde outrora fora uma igreja evangélica. Na outro lado a padaria do português, onde aos sábados a tarde, eu e Van íamos cobrar os funcionários que compravam fiado as confecções dela na época que morávamos na rua da Saúde dois anos atrás. Paramos na movimentada Rua das cajazeiras. O transito intenso e pesado de veículos, caminhões e ônibus subiam velozmente. Esperamos alguns minutos para passarmos a larga pista para o outro lado e subimos pela calçada, passando pela parada de ônibus em frente ao Hospital Infantil e a maternidade do estado. - Uma vez fiz um laudo pericial de um sargento do exercito que se esborrachou-se ao pular perto do aeroporto do Tirirical e o paraquedas não abriu e o homem caiu como um saco de agua – plf – e detalhou-me friamente o estado do corpo do infeliz e não demonstrou nenhum sentimento, uma coisa banal.
|
|