Quem matou Salomas Salinas - VI

Data 09/09/2025 20:35:00 | Tópico: Textos

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Nossa amizade recrudesceu em 1988, depois de muitos anos sem nos encontrarmos, logo após a venda da casa grande da rua Afonso Pena, no centro/Desterro, me mudei de livros e forja para um meia-morada de duas janelas e uma porta na lateral cedida por o viajandão Jando na rua Dr. Carlos Reis atrás da Igreja do Desterro.
Uma noite estava sentado na porta e ele saíra da casa do avó. Aproximou-se cautelosamente e com ar de graça pelo súbito encontro.
- E ai peixe, tá morando aqui? – e curioso lançou um olhar exploratório para dentro do corredor.
- Sim, me mudei para cá, depois que papai vendeu a casa – respondi levantando – Eles foram para o Cohatrac e eu fiquei aqui com a oficina.
- Dar prá apertar ‘unzinho’? Perguntou meio sem jeito e sorrindo maliciosamente.
- Claro, meu nobre, entrai ai – E fiz o sinal com a mão, entrou e antes de fechar a porta olhei suspeitosamente para os lados. Os vizinhos eram muito curiosos.
E dai fomos para o minúsculo quintal, de onde podíamos ver a parede da igreja e apertamos o ‘senhor’ baseado.

Meses depois, resolvi vista-lo no seu imponente bangalô na rua dos Afogados. Nesse tempo tinha mudado a oficina para um beco na rua da Manga e passava uma temporada na casa de tio Willi na Cidade Operaria.
Era de manhã e vinha de lá e desci na rua da Paz, segui pelo beco do teatro Artur Azevedo, atravessei a rua do Sol e entrei na travessa da ex-faculdade de direito e dobrei subindo a rua dele.
Toquei humildemente a campainha, minuto depois uma morena de avental abriu uma banda da porta e perguntou-me o que eu queria:
- Quero falar com o senhor Salomas! Ele estar?
Fechou a porta e minutos depois a abriu e me convidou para entrar. Penetrei no corredor bem asseado e ladrilhado. Salomas descia a escadaria garbosamente como um lord trajando um robe de chambre branco com as listas verticais azuis.
- Mestre Raimundo, que prazer em tê-lo aqui – disse apertando as minhas mãos, reacendia a loção pós barba – Já tomou café? – balancei a cabeça negativamente – Então vamos aqui – disse colocando a mão no meu ombro e me conduzindo a sua sala. Uma farta mesa nos esperava. Sentou-se na cadeira da cabeceira e indicou-me uma ao lado dele. Despejou o café na minha xi
- Leite? Perguntou-me com um bule de prata na mão – Biscoito, bolo ou pão?
Um verdadeiro gentleman que me deixou encabulado. Fazia de tudo para não deixar transparecer o meu nervosismo diante de tantas gentilezas.
Terminado o breakfest, levou para o fundo do quintal, entramos numa lavanderia abandonada, cheio de quinquilharias, um verdadeiro quarto de despejo. Puxou de um elemento vasado da parede, uma enorme ‘bia’.
- Mestre, o senhor quer fumar?
Espantei-me com o tamanho da ‘menina’.
- Poxa, mestre Salomas – Foi o que conseguir falar diante de tamanha ‘monstruosidade’.
- O que foi, mestre? Espantou-se com a ‘bicha’? – a devolveu ao lugar de onde pegara – Venha cá – saímos da lavanderia, atravessamos novamente o quintal e entramos na cozinha, onde a empregadinha de costa lavava as louças do café.
Subimos pela escadaria e fomos direto a sua suíte no final do corredor. Um janelão de quatro folhas com vista para o quintal. Uma estante abarrotada de livros, revistas, enciclopédias, capsulas de rifles de todos os calibres, um menorá – o celebre candelabro judeu de sete velas em prata. Duas capsulas de morteiro. Uma gravura judaica. A enorme cama de casal, uma televisão ligada e roupas jogadas na poltrona.
- Mestre, desculpa a bagunça, a menina ainda vem arrumar.
Fez sinal para acompanha-lo ao banheiro, abriu o armário de debaixo da pia, umas quatro latas de leite Ninho empilhadas, apanhou uma delas e a destampou perto do meu nariz, quase eu desmaiava com odor forte que dela emanou, cheia até a tampa só da pura maconha e da boa.
- Meu peixe conheci um canal e me dei de bem – tirou uma boa porção e voltamos ao quarto, sentou-se no banco da penteadeira e eu na borda do colchão. Deu uma folha de guardanapo e ficou com outra e jogou um pouco do fumo e ambos enrolamos nossos próprios baseados. – Meu primo Salomão conheceu uns índios e os trouxe aqui. Mestre quando mostrei umas bugigangas eles ficaram doidos e foram enchendo as latas.
Quando a campainha estridulou nervosamente ecoando na casa toda, acompanhada por duas batidas na porta. Meu coração acelerou e esfriei num choque só, entrei em pânico ao ouvir os passos abruptos no corredor e subindo a escada e chamando-o seu nome. Vendo o meu nervosismo e amedrontou-me ainda mais:
- Sió, será que é o mestre Riba? Ao ouvir quase me mijei ( Seu Riba, era comissário da Policia Federal e o terror dos viciados e traficantes devido a sua truculência e com certeza com esse flagrantes todos a pancadaria seria grande) e uma pontada no estomago. – Calma, peixe, é apenas o meu primo Salomão.
- E ai parente? – disse um jovem atarracado com uma bolsa a tiracolo -Já tão matando: Sentou-se ao meu lado.
Confesso que perdi toda a vontade de fumar e fiquei naquela angustia dos diabos. Salomas acendeu o dele e com o mesmo isqueiro o meu também que fumei meio sem jeito, tendo controlar e esconder a minha tremedeira. Que susto filha da puta, que com as tragadas foram amenizadas e até ensaiei de rir.
O primo puxou o pacotinho dele do colhão e começou a tecer um baseado. Eu ‘puxando’ como um dragão louco para acabar com o meu e sair dali imediatamente. Enquanto os primos tranquilos contavam as suas negociações com os índios. Passei um bom tempo sem visita-lo, até curar-me por completo do trauma.



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