Diario de pensão & oficina - VII

Data 29/09/2025 15:12:20 | Tópico: Textos

Samedi*, 08
Dia de Nossa Senhora da Conceição

Uma ressaquinha enjoada e enxugo a primeira lata de Glacial. Deu uma esticada no mercado para compra-las no açougue Dois Irmãos.
Seu Obina pega uma carona na carroça de Baixinho. A baixinha tesuda, inquilina das kitinetes de Lourival Cabelo fino de calça moleton colada, mostrando a sua riqueza e deixando-me cheio de tesão.
Abro a segunda lata, apanhei os salgadinhos na pasteleira. Aguardo uma senhora que desde ontem me rodeia para fazer uma cancela para seu chiqueiro. Cobrei-lhe oitenta reais - achou caro e comprou um no ferro-velho. Agora veio para fazer alguns reparos - colocar os gonzos. Janos vindo do mercado, encostou e trocamos algumas palavras a respeito da degradação da Praia Grande. Os bares fechados, onde eu e Dona Vani bebíamos nas sextas-feiras tirando gosto com mandioquinha frita. Ontem demos um passeio sentimental pelas ruas do centro.
Tudo começou no final da tarde, estávamos no face. Convidou-me. As seis passou na pensão, pagou-me os vinte reais e embarcamos num busão. Descemos no Parque Bom Menino, atravessamos e fomos sair na Rua Grande. Contornamos o canto da viração e entramos na Rua Grande que está de reforma. Foi uma sensação maravilhosa, ver o movimento dos transeuntes, o que chamou-me a atenção foi um casal de chineses idosos caminhando tranquilamente, observando meticulosamente cada detalhe. Para mim foi uma volta ao bom passado - a velha e boa Rua Grande da minha adolescência, das belas vitrines natalinas, dos passeios dominicais com Pai Bamba que terminavam com uma rodada de sorvete de ameixa no bar do Hotel Central na Praça Benedito Leite, servido por garçons de ternos brancos e gravatas borboletas. A tristeza de ver a Praça João Lisboa sem as suas tradicionais bancas de revistas, onde todas asa tardes comprava os jornais do sul.: Jornal do Brasil, O estado de São Paulo ou a Folha e quando não os achava levava "O Globo" - não gostava muito da linha editorial dele, eram muito carêtas e rezavam pela cartilha dos milicos no poder.

Domingo, nove de dezembro

Desperto tarde, triste e melancólico, pensando no meu filho, que visitou-me ontem a noite e assistimos o final de "O Grande Inverno" baseado num livro de Stephen King - depois o levei para casa, no meio da rua, pediu-me dez reais - que tristeza e decepção , ter um pai liso e sem nada - abracei dizendo-lhe que não tinha e se não queria dois reais -aceitou de bom grado e conformado com a minha aparente pobreza. "Ao menos não está mais liso" tendei remediar.
A princípio pensei em não vim para cá - assistir o Globo Rural e planejei digitar uns textos, então chegou Seu Pietro e monopolizou o desktop, ai não dar pra ninguém.
Uma manhã abafada, um mormaço e um preguiça colossal. O sr. Kanf se equilibra nos andaimes para continuar a tarefa de pintar a parede de Seu Mario.. Samuca, o pedreiro volta pedalando rapidamente, o tempo está fechando-se . Logo que acordei moído, para despertar nada melhor que uma boa leitura do meu mestre amado Henry Miller, o menino da rua Decatur do Brooklin. Um sonoro e nostálgico chorinho tradicional, enquanto Sr. Kanf passa o rolo na parede alta - um trabalho de alta periculosidade e concentração - num movimento constante de sobe e desce. Um chuvisco miúdo. O vapor sob do asfalto úmido. O sr. Kanf não se intimida, muda de posição e continua firme na sua labuta. Mergulha o rolo na lata de tinta pra umedece-lo. Pinta bem no meio da cumeeira - luta bravamente pra conclui-lo. Calabreza, o meu redentor e sua maezinha voltam da Escola dominical cheios do espirito santo - Little fat também subiu ainda pouco. Samuca comprou um fardo de Glacial para presentear um amigo. Contou-me umas aventuras nos terreiros de candomblés - onde sempre é bem-vindo pelas entidades incorporadas.


Pensão - Para calamar as minhas tristezas, datilografo um pouco para aquecer o ego, que anda meio-bolorento. Mas a máquina de escrever não está nada boa, deve ser a fita seca - enchi uma lauda com um depoimento aleatório. O mormaço continua abafado - arrumo os livros nos lugares - separo os de Dostoiévski dos outros escritores russos. Até li uma página de "Dr. Jivago", o antológico livro de Boris Pasternak.


As abusadas e falsas reunidas na mesa de jantar para tricotar a vida das colegas.
As onze e quarenta, depois do banho e de ler a chegada da família Jivago na antiga propriedade do avô em Varikino, a léguas de distancias de Moscou, próximo a Sibéria. Sai para a minha ronda pelo mercado. Encontrei meu velho amigo Seu Nezinho, que fazia bastante tempo que não nos víamos. estava trabalhando no seu antigo emprego no lava-jato no Calhau. e ganhou dois mil reais por um mês de trabalho.
Requento a minha substanciosa gororoba, encontrei uma barata dentro do copo com banha de porco que acumulei da fritura dos toicinhos. Botei-a fora e juntei os pedaços de trota de carne e de camarão.
Vou ao mercado pela segunda vez. Os portões estavam fechados, exceto o do Valdecir, onde um vigia, um baixinho sério relutou em deixar-me entrar. É parente dos Correias, de São João Batista e esse pessoal são de poucas palavras. Segui para comercio do finado Bispo.
- Quanto é uma carteira de Might?
- Quatro e cincoenta - respondeu o jovem atendente, também serio.
- Quero quatro reais - pedi
Ele apanhou a cédula de cinco reais e dirigiu-se para o caixa, onde a filha mais nova estava.
- Eu fiz pra ti por quatro a carteira - e entregou-me duas moedas de cinquenta centavos e a carteira de cigarros.
E vim embora, passei pelo porteiro vigia que fechava o portão que continuava impassível como Bruce Lee.
- Bom trabalho - desejei-lhe para quebrar o gelo, o turno é dele e sairá apenhas amanhã.
Não esboçou nenhum sorriso e nem um agradecimento.
Atravessei a pista. Com essa missão ganhei uma lata de Glacial da Sra. Vince e a muito custo conseguir convence-la emprestar-me dois reais para paga-la amanhã.
O céu encobriu-se e a temperatura baixou. Danielzinho lava o carro. Abro a quinta lata de Glacial, depois de urinar no banheiro.


Final de tarde - Oficina


O incansável Sr. Kanf continua luta para concluir a sua ardua missão. Ajudo-o a levantar a tabua para montar no andaime, assim como o balde, a lata de tinta e rolo com um longo cabo.

- Vou entrar para o livro? perguntou-me ao ver-me sentado na calçada do Seu Alcides registrando seus últimos momentos.
Ainda estou estonteado pelas cinco latas que mamei antes do almoço. Observo o trabalho do Sr. Kanf arrematando o ultimo pedaço. Na calçada de Seu Obina, uma rapaziada coloca uma areia para dentro de uma das kitinetes.
AS seis horas da tarde, ajudei o Sr. Kanf - primeiro descemos o balde de tinta, a lata do selador, o comprido rolo, a tabua e por último as peças do andaime. Seu Alcides saiu de casa falou com Sr. Kanf e nem olhou para mim. Também o ignorei - encostei os andaimes na parede. Depois fui conversar com Seu Cardozo, o merceeiro que estava sentado sozinho na calçada em frente a sua mercearia.

Não jantei, apenas bebendo água... Dr. Jivago é sequestrado por um grupo de guerrilheiros.



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