
Diarios de Oficina & Pensão - XI
Data 03/10/2025 15:07:55 | Tópico: Textos
| Segunda-feira, 17 de dezembro Oito dias para o Natal
E nada de novo no velho e triste front. A mesmice de sempre com seus respectivos personagens desse cotidiano sem fim, obrigando-me a refugiar-me na leitura e na escrita. Ainda bem que elas existem para o meu bel-prazer. Uma manhã igual as outras - uma solda e ganhei oito reais de Zeca Handicap. Seu Obina foi banhar-se. Os latidos estridentes e ferozes das cadelinhas, ‘as cerberas' da rua 23. Uma de minhas paixões secretas deu-me um bom-dia insosso e entrou num carrinho. Uma velha conhecida do bairro do Desterro faz um sinal de positivo. O filho, professor e funcionário público toda vez que me encontra promete dar-me no final do mês uma importância para ajudar a imprimir um livro. Essa história já passou várias luas. Todos querem me auxiliar, mas a dura realidade deles não coaduna com seus anseios filantrópicos. E assim vão me iludindo e eu calejado por essas falsas promessas finjo acreditar. Mas quem sabe um dia quando menos esperar as coisas aconteçam. Tudo que quero é viver um grande amor - amar e ser amado em todos os sentidos dessa sublime palavra. Mas há um grande empecilho - a falta crônica de recursos financeiros - "sem dinheiro não há calcinha" - então me recolho na minha insignificância. Um sol esquenta e requenta os sonhos de validade vencidas. Blindex meio perdido estar de férias alcoólicas. Delegado ainda não deu as caras, talvez esteja abraçado com uma garrafa de pinga nos bares da vila ou curtindo uma monstruosa ressaca. Faço um cafuné na cabeça de Mr. Woolf que passava malandramente na calçada e o chamei. Entrou todo feliz balançando a cauda, a língua de fora e espirrou nas minhas pernas.
Começo da tarde, meio zarolho com duas latinhas, a última quente como um purgante. As lojas de confecções fechadas, o odor das galinhas assadas e o céu nublado. As vielas do mercado desertas, Seu Biné le president fechando as portas para o recesso do meio-dia.
Não sobrou nada de ontem, as visitas dominicais devoraram tudo. O odor forte do sabonete caseiro do mestre Newton, o seguidor de uma nova seita Ex's - prometem revolucionar o conceito litúrgico filosófico cristão. Uma persona muito extrovertida, alerta para os perigos do big-brother do projeto blue - um satélite americano que rastrea até o pensamento. Prega a volta as origens, uma vida simples e sem agrotóxico. Passou um baque numa fazenda mineira na colheita de cebola e rompeu os vínculos com a igreja - com todas.
Não digitei "Casa 503 - preferi Diários de Oficina, está tendo uma boa aceitação. Assisti dois filmes interessantes. Um tcheco-polonês "O Cuco da Floresta Negra" e "O Milagre de Cokeville" - ótimos para refletir.
terça-feira, dezoito - sete dias para o natal
Seu Obina e Delegado sentados na porta com dois guardiães do oraculo e no rádio a voz melíflua de Baby Consuelo e os Novos Baianos cantando "Brasil pandeiro" A cabeça quer estourar, mas a contenho com boas perspectivas que sei nunca serão realizados. Jejuei ontem a noite. Os dois guardiães - um magro como um espeto e outro gordo com um buda contemplativo. Um olhando para o outro em busca de algum assunto desassuntado - de domínio comum. Caracas passa carrancudo, com umas ferramentas, nem olhou para seu Obina - estão brigados novamente, tiveram um desacerto que quase chegava a via dos fatos. - Apagou o fogo no Lourival? - perguntou Seu Obina de pé no meio da calçada para o curioso parceiro. - Apagou - murmurou entre os dentes. - Vou fazer um serviço - completou Seu Obina caminhando. Uma morena bela de cabelos lisos, bermuda moleton corre na pista.
No meio da manhã, Delegado trouxe um copo de café com leite e Gordinho o pão. Comprei um enrolado na pasteleira e paguei o de amanhã. Para passar o tempo leio um livro de química - obter conhecimentos nunca faz a mal ninguém. Delegado entrega-me uma cartela com quatro comprimidos de Hemifumarato de Quetiapina, engulo uma para acalmar os nervos e combater uma pequena e chata depressão que assola-me de vez enquanto
Onze horas de um frigida manhã quase nublada e calma - A tiapina faz efeito, sinto-me um pouco diferente, quase sonolento e tranquilo, numa paz artificial. O avó de Steinbeck era ferreiro e cavador de poços no Vale de Salinas na ensolarada Califórnia - as vezes as descrições do trabalho a borda da forja e da bigorna, lembra-me ao do meu velho pai Bamba, que também foi um bom ferreiro: - Tu já viste em filmes de bang-bang (ele adorava esses filmes era fã de John Wayne e Errol Flinn) um marceneiro? - Não. - Pois é, meu filho a nossa profissão é maravilhosa, - Vangloriava-se todo suado e manuseando com arte e precisão a tenaz segurando o ferro incandescente e a colocando sobre a bigorna e depois o malhando.
estou cansado sem fazer nada, apenas lendo e relendo e ouvindo as belas canções conterrâneas no programa "Santo de Casa" da Universidade Fm. Um cachorro faminto cheira um saco de lixo na calçada. Um chuvisco rápido umedeceu palidamente o asfalto, subindo o vapor e odor de terra molhada. Aproveito a enxurrada para descarregar um litro com urina acumulada. A chuva recrudesceu estupidamente. Um cão felpudo encardido de sujo parou na porta em busca de abrigo, convido-o para entrar. Prefere ficar na chuva molhando-se. Assovio, nada e vai embora. Pauvre chien"
- Vou matar Tio Raimundo! - exclamou a pequena Adriele num rompante que assustou todos nós que estávamos na sala de estar. - Tu só fala besteira, menina - ralhou ainda espantada a zangada Sra. Vince Eu gargalhei, achei engraçado.
No Jornal Nacional, as mesmas notícias - a bola de vez é a prisão do médium tarado de Goiás que enrabava suas pacientes para cura-las de seus males psicológicos - preferi recolher-me aos meus humildes aposentos e ficar na companhia interessante e agradável dos livros e mestres.
Quinta-feira, 19 - seis dias para o Natal e meu aniversário - completo 58 anos
Como de costume, ninguém se lembrou e nem me parabenizaram. Ano passado o Sr. Vince e Tio Biné ainda me abraçaram e a muito custo pagaram uma lata de cerveja. estavam ébrios. E assim vou caminhando nessa longa estrada da existência - Vivi tempos áureos, amei e fui amado. Conquistei a mulher dos meus sonhos depois de muito sofrimento - um amor que durou 18 anos e geramos um filhote. Fui funcionário público do Tribunal de Justiça, publiquei oito livros que nunca foram lidos e lógicos nem vendidos. Depois da separação fui gigolô de puta pobre. E agora estou aqui celibatário como um monge trapista, somente lendo e escrevendo. - Hoje é dezessete, Seu Raimundo? perguntou-me de supetão Seu Obina - Não, dezenove - respondi com vontade de dizer-lhe que era o dia do meu aniversario - Cinco dias para o natal. Para certificar-se puxou o enorme smartphone preto do bolso da bermuda Adidas de lista amarela, consultou-o e balançou a cabeça e acendeu um careta e deu uma boa baforada - 2018 tá indo embora. - Graça a deus, esse foi um ano ruinzinho (lembrei-me da Rainha Elisabeth "Anus horrible") - arrematei. A loura tesuda caixa de um supermercado com seus seios duros como melões sacolejando a cada passada. Seu Obina tenta me ferrar dois reais para encher os pneus do possante..
Admiro Henry Miller porque compartilhámos o mesmo sonho, vencer através da literatura. Ele conseguiu e... eu continuou na mesma. Mas não desisto, mesmo que a Sr. Vince dizendo todos os dias que só escrevo besteira. Para dissipar qualquer neura depressiva no meu intricado ser aproveito o resto do café que Delegado trouxe e sorvo com uma diminuta queatipina
Fui forçado a dormir por alguns longos minutos. Arriei a porta e acomodei-me confortavelmente na cadeira senhorial, apoie os pés na cadeira de plástico e bodei pesadamente. Despertei ainda grodeado. Aos poucos a pilha do radinho vai enfraquecendo.... e poeta carregando a sua via crucis numa manhã nublada.
Quinta-feira, vinte de doze - cinco dias para o Natal e onze para o termino desse anus horrible
Uma branca cheia de carnes e apetitosa deu-nos um bom-dia e sutilmente atravessou a pista e escafedeu-se pela porta da casa de Seu Cardozo, o merceeiro. Eu e Seu Obina ficamos de água na boca - uma estupenda fêmea. O sangue ferveu para depois congelar-se ao comparar a minha dura realidade financeira. Na Praça das Sete Palmeiras, Seu Riba Meia-Foda estava sentado no banco que outrora fora o preferido dos papudinhos - tempos bons quando a cachaça corria solto e tínhamos um grupo coeso de consumidores. tenho um conto "Vila Embratel/Praça Sete Palmeiras", que não sei porque o renego e não o digito, meu filho lera e gostara. Poderia fazer um mezzotin como Walt Whitmam e Henry Miller fizeram e vendiam diretamente ao público. Com essa vida desregrada que levo, mijo todo o dinheiro que ganho. A visita inesperada do pequeno Rômulo, uma conversa agradável a caminho do mercado para comprar um frango. Um bom menino. Presentei-lhe com um exemplar de "Casa de Pensão" do nosso admirável conterrâneo Aluízio Azevedo. Depois foi a vez da Sra. Sapato com o mesmo assunto, de uma vizinha que é apaixonada por ela e o marido a convidou para uma suruba. Fui apanhar o café no Gordinho. A branca estava sentada no sofá de frente para janela, numa posição não muito santa, bem a vontade. Entreguei o copo. Percebendo a minha presença se recompôs com uma cândida donzela. Talvez fui indiscreto em encara-la frontalmente. Era a tia paterna de Gordinho. Oh! Meu Deus que sacrilégio. Mas que é tentadora é. releio "O Arquipélago 3" de "O Tempo e o Vento" do mestre de Cruz Alta Érico Veríssimo - um painel sobre a vida politica no Rio Grande do Sul nos anos 30. - Ei rapaz tu para de ler, olha tua mente - ralhou-me Dona Joana, a sogra de meu amigo Waldecir acompanhada pela filha comerciante do mercado. Seu Costa comunica-me com muito pesar o falecimento da mãe de Seu Cesar Bude, ontem a tarde - depois de um longo período de sofrimento Narrou-me também a sua via-crúcis com sua falecida esposa, oito anos sofrendo de câncer no estomago. - Olha ai, professor - disse um cidadão meio-ébrio desconhecido com uma sacola, parou olhou para mim, hesitou por uns instantes: - A verdade é que todas as igrejas são arrebatadas. Todos irmãos são patifes. E eu sou um deles. Só existe dois caminhos - a verdade... -olhou para a calçada procurando a palavra certa. - A verdade - repetiu esforçando-se para lembrar-se da outra - A verdade. e a mentira - virou-se e seguiu feliz o seu caminho. Enquanto isso em Santa Fé os revolucionários preparam o golpe. O caminhão do lixo parou e os garis apanham rapidamente os sacos de lixos da lixeira de Dona Maria e jogam nele. Um ônibus para também e desce pela porta dianteira um senhor com o braço na tipoia.
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