Na vida de Júlia (Cap. 3)

Data 16/10/2025 16:00:33 | Tópico: Poemas

A campainha tocou
Meia hora mais cedo
Do que o combinado
Mau! Por acaso, estou pronta....


Júlia melhorara das dores
Pôde arranjar-se como queria
Uns jeans, camisola de lã laranja
Meias grossas cor-de-rosa
(naquela casa não se usava calçado)

Um lenço na cabeça que prendia outro à frente da boca
Sentiu-se uma oriental
Sem saber se isso era bom ou mau
Estar com o rosto tapado talvez fosse bom

As dores melhoraram, mas ainda não conseguia colocar a prótese dentária
Luís sabia, claro, da sua existência devido a um acidente rodoviário grave que Júlia tinha tido no passado com a família.

Estava bonita e sabia-o.
Olhando-se no espelho da entrada, pensou
54 anos, não pareces não, nem doente
Viu de novo os olhos verdes com o rímel azul
ficaram bonitos, do rosto dela só estes se viam
olhou-se na totalidade e gostou
Sorriu. Demasiado para voltar a dor. Porra.

A campainha tocou de novo.
Sim, Luís. Sobe.
Abriu as portas e esperou no apartamento.
Que aflição será esta? Nem parece dele...
Luís trazia uma barba aparada, esbranquiçada com o o cabelo curtíssimo.
Como sempre, um manequim. Elegante e bem vestido.
Entra, disse ela, e deixou-o passar. Sentiu-lhe o cheiro familiar. Inspirou longa e silenciosamente o perfume de anos. Como se precisasse dele para lhe falar, estar no seu ambiente.
Apreciou essa inspiração demorada e devagar fechou a porta com a cabeça e ali ficou.
Luís não a via de onde estava. Levantou a voz para perguntar se estava tudo bem.
Sim, tudo bem.
Viu que ele tinha tirado os ténis e ela nem deu conta.
Estava sentado no sofá da sala de estar, numa ponta, apoiado num dos seus braços.
Sentou-se em frente a ele, mas do outro lado, e perguntou o que ele bebia. Vinho tinto para ele, chá de gengibre para ela (álcool não por causa dos medicamentos, caso contrário acompanhava-o) e tabaco.
Ligar candeeiros de mesa e chão, acender uma vela e o difusor. Ele não estranhou. Conhecia estes hábitos preparatórios de outros serões, de outros tempos. Gostava. Dos cheiros, da luz, do ambiente, das conversas, ....
Então, como tens andado. Ele perguntou. Mecanicamente, ela respondeu sem pensar que estava tudo bem. Silêncio. Ela corrigiu, quer dizer, não está. Basta olhar para mim. E contou do episódio da urgência, das dores até ao lenço que tinha agora. E ele? O que queria falar?
Olhava para ele enquanto ele falava do dia a dia e pensou que estava mais magro. O grisalho ficava-lhe bem. Estava um homem bonito. Era uma boa fase para ele.


Não? Não, Júlia? Perguntou-lhe.
[.........????]
Que desculpasse. Distraiu-se, não tinha ouvido...
as dores e os medicamentos.
.. peço imensa desculpa.
......

Luís baixou a cabeça. Ouviste alguma coisa do que eu disse?

Acerca de quê? (caramba!!!!)

De tudo, acerca de tudo (ele falava baixo e pausadamente, mas firme e sério). Ok, desculpa. Estou um pouco nervoso, isto não é fácil e eu não quero aborrecer-te. Pelo contrário. Ainda por cima, estás doente, foste querida em receber-me. Desculpa.


(Que será que estava a dizer???)

Não tem problema, sabes bem.
Estás à vontade cá em casa. Realmente, hoje estou um pouco fora de mim, mas paciência. Acho que podemos conversar na mesma.

Diz-me. Mas eu. Em que posso ajudar?

(continua)





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