Dez Sonetos da Guerra na Crimeia parte nove

Data 20/12/2025 07:48:30 | Tópico: Poemas

1. A guerra é uma história sem moral


A guerra é uma história sem moral,
não tem graça, nem final feliz,
apenas frases em que nada se diz,
em que tudo se reparte desigual.

A guerra é a maior face do mal,
sentença sem direitos, nem juiz;
quem escapa, escapa por um triz
sem mapa, escala, onde tudo vale.

Surge em todos os meridianos;
os lobos, os suínos, as raposas
repetem as atrocidades, sem dó.

Vivemos numa fábula de tiranos,
cheia de personagens manhosas,
sem nome, sem magia, sem avó…


2. Dedal


Se se vão os anéis, ficam os dedos,
são vinte, quase todos amputados
e seguimos de mãos e pés atados,
destapados, coxos, não há segredos.

Acostumados a drones, torpedos,
a coronéis, tantos outros soldados,
vamos, a zero, tod'alienados,
contamos pelos dedos e azedos.

Tudo marcha depressa e não passa,
em cada praça o tempo não cessa,
sem verbo, sem horas, sem minutos.

Vão-se os anéis, fica esta desgraça,
dedos esfolados onde começa
o que não se conta, eternos lutos.


3. Hemofilia


Já lá estão, a bebé e a outra mais nova,
exangues e no mais puro vazio.
A morada de ambas é, agora, o frio,
já lá estão, no chão de pés prá cova.

A Mãe não aprova, nem desaprova,
fazem todas as três um triste trio.
Desfeitas em morada sem feitio,
num repente entraram nesta trova.

Corpos desmembrados, órgãos à vista,
menos um choro, menos uma birra,
há um pó que, por todo lado, assenta

e se acumula, nesta horrível lista
em que nada cresce, tudo mirra.
Jornada triste, de morte sangrenta.


4. Mártires e feridos


Mártires e feridos cá andamos,
passando da coragem ao medo;
o medo que deixa tudo azedo,
feridos no corpo nos desalmamos.

E esta oração que nós oramos
defende-nos hoje, e desde cedo,
armados de coragem neste enredo,
ou será de medo que nos armamos?

Somos todos mártires e feridos;
a alegria é só uma lembrança
antiga, que permanece lá atrás.

Nesse lugar eramos escolhidos,
perdemos, de vez, a esperança
até já esquecemos o que foi a paz.


5. zap


É o cessar-fogo que não cessa,
mentira contada de verdade
e essa verdade a mentira invade,
contada amiúde e muito depressa.

A morte multiplicada se expressa
ao expoente, sem que se degrade.
E nada cresce, nem ganha idade,
tudo se perde, mirra; nem começa.

É, com tão poucas letras, soletrada,
cheia de razões e sempre sem razão.
Numa arte que envergonha o artista.

Até a vitória sai derrotada,
ninguém ganha, não há competição.
Na guerra só o nada se avista.


6. Palavras cruzadaS


Lutava nas cruzadas, o cruzado,
mas não a luta do dia-a-dia,
pensando ganhar, ele perdia,
perdendo, ganhava o pecado.

Guerreava’ terra, por um bocado,
cheia de cheiro, que o destruía,
a pólvora, a morte vazia,
ao vazio que preenche, irado.

Obedecia a uma patente,
cumpria ordens, era cumpridor.
Nunca questionava a sua missão.

Obedecia para ser obediente,
morria por um ser superior,
cruzado sem lei, nem religião.


7. Qual epopeia?


A guerra na Ucrânia continua,
que cambada de imbecis, idiotas,
alguém inteligente toma notas,
neles, a dita, é coisa que flutua.

E a verdade, nua e crua
é que são pessoas sãs e devotas,
a maioria, são poliglotas,
sob o mesmo sol e a mesma lua.

Não há quem dela não tire proveito,
até esta merda desta epopeia
que parece não querer acabar.

Para quase todos dá muito jeito
menos para quem a odeia
e às famílias e mortes a lamentar.


8. Cota de malha


Há quem chame de botas ao coturno,
incapaz de ler o sangue na lama,
ignora a vingança que me inflama
sob esta lua, neste céu noturno.

Não há graxa, tudo é soturno,
se espezinho todos nesta trama.
Do inimigo não há dó, um grama
que seja, que reste, neste turno.

Colete de balas, cota de malha,
há quem pense serem os dois um só;
desconhecem o feito de carne e osso.

Maldição que, até por ti, se espalha,
que reduz tudo o que brilha a pó,
nada vinga, tudo acaba a grosso.


9. Prémio sem consolação


Se tudo é raro e inda sabe a pouco,
mal que não é doce, só amargo,
é, também falho de estreito, largo,
desconheço de que paga é troco.

Ganho que é fraco, cheio de oco,
eco que soa ao silente, cargo
que se sente ausente, ao ilhargo
há um vácuo que serve de reboco.

Perdido por perdido, vale tudo,
nada ter, menos ainda ganho,
apenas ter jeito prá falta d’sorte.

Uma meta que nos mete em escudo
é um final que dói, de tão estranho,
o término da vida, ser a morte.


10. Oficial de dia


No dia em que jurei bandeira,
prometi nunca quebrar a jura
e a promessa ainda hoje dura:
às armas, até à morte certeira.

Incerta é esta minha maneira,
maneira esta que não tem cura,
guardo em mim, também, a amargura,
cada um que mato, é-me asneira.

Matar ou morrer, morrer ou matar,
na guerra não há outra escolha.
Tenho o passado perto do futuro.

Fica esse dia ainda no olhar,
só eu, para ele se perde e olha;
tudo o que virá é tiro no escuro.

Estes sonetos foram feitos com a colaboração do meu alter-coiso cheiramázedo, como comentários a outros.
A eles o meu muito obrigado, ao outro estúpido, não.




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