Manuel Gervásio e o tabuleiro de damas

Data 01/06/2008 12:05:51 | Tópico: Contos

Manuel Gervásio gostava de se vestir bem, o fato ficava-lhe grande, com o tempo a gente minga, tinha mandado fazer-lhe as baínhas na costureira da aldeia, a gravata é de um vermelho vivo que em nada tinha a ver com o resto da indumentária. homem aprumado, apiraltado como poucos, gostava de exibir a sua sensualidade todas as tardes no café do Armindo. aos 70 anos poucos se podiam gabar de ter tanta genica, todas as manhãs acordava às sete da manhã, vestia o fato de treino da nike que comprara aos ciganos já há mais de cinco anos e ia à padaria dar uma de sensual para cima da menina Gertrudes. regressava a casa e ficava até ao meio-dia a ouvir a rádio renascença enquanto escolhia um fato, acabava por ser sempre o mesmo e só a gravata variava de dia para dia, os sapatos eram de verniz pretos e o cabelo puxado para trás com gel combinava perfeitamente com o seu ar de garanhão português, uma florzinha do canteiro da praça pendurada ao peito fazia o remate perfeito de todos os dias. a passo lento, porque gostava de apreciar quem passava ou então porque lhe doíam as cruzes da pesada velhice, caminhava até à esplana do café, esperava que o Armindo viesse dar-lhe um "passou-bem" e lhe trouxesse o seu galãozinho quente sem açucar com meia torrada, os diabetes não o deixavam deleitar-se com melhores comezainas. depois de tomar o pequeno almoço que já cheirava a almoço, visto o relógio da capela já há muito ter dado o meio-dia, erguia-se e levantava o braço para pedir à servente que lhe trouxesse o Jornal de Notícias, tirava os óculos do bolso e com o Jornal tapando-lhe a faça ia, entre esta e aquela notícia, espreitando a servente. Miquelina era moça jovem, na casa dos vinte nunca tinha conhecido outro trabalho, sabia que muitos eram os clientes que só frequentavam o café para a apreciar de longe mas estava segura, na última vez que alguém experimentou tocar-lhe Armindo buscou a espingarda e com dois tiros ao ar afastara a clientela por mais de 15 dias. Manuel Gervásio é mestre no jogo de damas e espera que à meia tarde os seus companheiros apareçam para apostar tudo, nunca tinha perdido nada que ultrapassasse o valor de uma cerveja mini. Ali todos lhe conhecem a delicadeza das jogadas que aniquilam por completo os adversários. há mais de vinte anos que joga com aquele tabuleiro de damas, tem de ser o mesmo, é um homem surpresticioso e acredita que quando jogar com outro tabuleiro terá azar para a vida inteira. todos riem dele e poucos são os que dão valor às suas palavras mas Manuel Gervásio não se incomoda.
naquela tarde Albino Texugo e Ricardo Sá tinham chegado atrasados, Manuel Gervásio já tinha lido por duas vezes o Jornal de Notícias sempre com o vagar que o caracterizava. sentaram-se na mesa do costume e pediram à Miquelina que lhes trouxesse o tabuleiro do costume e três cervejas minis. enquanto esperavam conversaram sobre a greve dos pescadores e sobre o aumento do preço dos combustíveis, em certo ponto da conversa Manuel Gervásio exaltado levanta-se e com a mão acena meia dúzia de palavrões insultuosos quando de repente repara que os seus companheiros estão de olhos esbugalhados na direcção do café, o café do Armindo pegara fogo e ninguém conseguira entender porquê. logo Albino Texugo pegara no seu motorola e chamara os bombeiros do concelho, Armindo com os mãos na cabeça chorava com Miquelina ao lado, Manuel Gervásio e Ricardo Sá nada tinham dito até então. parados em frente ao café assistiam àquela má sorte, de repente Manuel Gervário tira o casaco e entra no café em chamas, cá fora a população num ajuntamento próprio de catástrofes criticava o doido. Albino Texugo e Ricardo Sá esperavam cá fora que um milagre trouxesse o amigo vivo, ninguém tinha ainda entendido porque Manuel Gervásio se metera dentro do café em chamas, quando o viram sair com o costumeiro tabuleiro de damas entre mãos, riram-se à gargalhada.


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