365 Crónicas de um Soldado Desconhecido (1)

Data 09/06/2008 22:06:54 | Tópico: Crónicas

Sou novo, tenho apenas 21 anos e forcei-me a vir para a guerra para não levar uma vida de gatuno.
Os gangsters de Chicago disputavam jovens como eu nos velhos bairros sujos e decrépitos dos subúrbios, isto no final dos anos 20, após a Quinta-Feira Negra. O pão mal chegava para toda a família, comiamo-lo por turnos para não termos todos fome às mesmas horas, o primeiro era sempre o pai, que tinha de procurar trabalho ou fazer uns biscates aqui e ali, e depois a mãe que fazia arranjos de roupa mal pagos para as finórias esposas de banqueiros semi-falidos, algumas já viúvas mercê do suicídio de seus maridos. Vivia-se numa roleta em que os mais estúpidos se governavam com uma metralhadora e sem respeito pela pobreza dos outros.
Aqui oiço o zumbido das balas metralhadas pelos Alemães, os gangsters cá da zona, vejo os meus camaradas de armas a pedir ajuda por lhes faltar um membro ou meio corpo, vejo os olhos de quem já nada vê, o fumo negro que sai de obuses detonados, ruínas... não vejo nada.
Estamos em 1942, Dezembro, mês frio numa Europa em escombros, as notícias que nos chegam de casa são quase sempre boas, de vez em quando lá morre a velha tia de um qualquer soldado. Dizem que está tudo bem por lá e que nos esperam como heróis.
Heróis! Heróis de membros amputados e com a morte na recordação. Quando cá chegámos, ficámos alguns dias em Inglaterra para que os Generais decidissem o nosso destino, muitos, como eu, tinham tido pouco treino por terem sido voluntários, dois, três meses no máximo e depois atirados aos canhões.
A vida só perdoa àqueles que podem comprar o perdão, aos outros não.
O meu avô Simeon dizia-me para fugir de perto dos ricos, só assim poderia ser como eles, vendo ao longe os erros que cometiam e evitando-os, tinha graça o velhote. Conseguia ver-me nos olhos dele, fundos. Os seus setenta anos despediam-se todos os dias da vida cada vez que acendia o cachimbo cheio de aparas de madeira que ia apanhando, depois juntava-lhe uma folhinha de hortelã para disfarçar algum cheiro, como se conseguisse.
Talvez tente ficar aqui pela Europa depois da guerra, se sobreviver. Aqui diz-se que se um soldado levar um tiro é mandado de volta a casa e que ganha uma pensão de guerra, não sei de quanto será, mas também não me sinto com coragem para levar um tiro. Talvez seja por isso que fecho os olhos enquanto despejo as ante-câmaras da metralhadora.
Perguntei, na trincheira, a um desses ingleses empertigados quanto tempo esperava que durasse esta loucura, o pobre não teve tempo e me responder, assim que me olhou foi atravessado por duas balas perdidas na cabeça, fiquei agoniado e aos gritos, completamente sujo e não foi só com os miolos dele, as minhas entranhas saíram todas. Quando o tiraram de cima de mim não via mais nada que não fossem perfis vermelhos, perdi os sentidos, os sentidos e a dignidade, se é que tal existe num sítio destes.


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