a sensibilidade não constrói os armazéns das fábricas!

Data 05/07/2008 22:50:35 | Tópico: Contos

Comecemos. Como começa o rapaz a conhecer o seu corpo. As suas novas medidas. O tamanho do seu sexo, que já não é a sua mãe a lavá-lo. Agora tem de ser ele. Tem de ser ele porque cresceu. E quando as pessoas crescem têm de ser elas a tomar delas. Era um rapaz qualquer, podia ter sido eu, podia ter sido aquele velho ali sentado a ler o jornal de trás para a frente. Podia ter sido o homem que varre a estrada antes de ser o homem que varre a estrada e ser ele este rapaz, que um dia se pôs a olhar o seu corpo e se foi conhecendo e tomando as suas rédeas.

Ele quinze anos, não é dos acham que a velhice é uma distância, não usa livros debaixo do braço porque dizem que só as meninas é que andam bem arranjadas é só elas é que devem levar os livros na pasta, que todo o ano cheira a novo. O seu pai também levou os seus livros debaixo do braço. Lembra-lhe. Dá um certo estilo à rapaziada, e elas, adoram esse toque de masculinidade, tal como ter borbulhas no rosto.

Ninguém sabe o sabor de um beijo antes de dar o primeiro. Ninguém imagina a dor da perda sem que antes o destino pregue uma rasteira e retire alguém à força do seu sítio reservado na mesa de jantar. Só depois dos acontecimentos é que podemos classificar. Até lá, vamos dando palpites.

O rapaz é ainda muito novo, sofre de incompreensão só porque gosta de ler poesia.
O seu pai acha que a poesia é para as raparigas que usam vestidos vermelhos e cheiram flores no jardim, em bicos de pés. Ele devia era ler assuntos de política ou estar a par das jornadas do campeonato de futebol de todas as divisões.
- Poesia?! Só faltava mais essa! A sensibilidade não constrói os armazéns das fábricas!

A sua respiração tremia como quem mexe à bruta nas águas paradas do tempo, como quem por ignorância, mata a abelha rainha ao sair da colmeia.

O rapaz foi crescendo, crescendo, até ao ponto de não caber nos dias e só frequentar a noite, as luzes coloridas dos bares, o devorar dos sons como quem por fome trinca uma maçã.

Ele tinha um sonho. Os sonhos não são para contar. Dizem que dá azar. Pois se o contarmos, deixa de ser sonho e passa a ser uma vaidade, um acto de querer imitar os outros. Guardar um sonho é roer as unhas de Deus até que Ele sinta a nossa fome de querer. O Rapaz, que já é grande, acha que assim é. Por isso guarda-o, como o amante guarda o número de telemóvel da sua amante, na cabeça. Assim não há provas de um eventual fracasso. Sonhar não tem lei nem regras.

Mas o rapaz tem um pai que detecta sonhos que acha que são maus. Um dia viu o seu filho em casa vestido de mimo, produzido tal qual um palhaço triste, a falar para o espelho e, sacudiu-lhe forte o corpo.
- Os homens querem-se rudes e com poucas expressões, ouviste?!

O rapaz saiu de casa sem dar explicação. Dizem que andava por aí a grafitar paredes com palavras de insulto aos ministros. Perdeu a sua vaidade de compôr o seu risco ao lado e, andava sujo e mal vestido.
Um dia conheceu uma pessoa importante do teatro em que esta levou-o a conhecer outra pessoa e mais outra e, da rua para o palco dos teatros foi um estalar de dedos. Depressa deu nas vistas com seus dotes de representação, do anonimato à critica de imprensa nacional foi a sensação de que apenas fechou e abriu os olhos.

Começou por receber cartas em casa de pessoas que o admiravam, elogios de certos senhores com trato de doutor, mas, numa dessas cartas, meia escondida, havia uma outra que se destacava das demais. Uma carta sem remetente, escrita com letra tremida, escrita a custo, de alguém que se arrependera, talvez. Pegou na carta, tentou adivinhar o seu interior colocando-a de frente para a luz.
Percebeu uma palavra.
Uma única palavra.
Uma palavra que amava e deixou de amar. Qualquer coisa como “pai”. Não abriu a carta nem contou nada a ninguém. Deitou a cabeça na secretária e dormiu mais um bocado na esperança que o sono apague o caminho do fogo.




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