uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão

Data 12/07/2008 00:22:24 | Tópico: Contos


O silêncio é uma praia brasileira: com um extenso areal, cheia de turistas que não se entendem, onde os corais vêm dar à costa.

Ficamos calados porque ficar calado é uma forma de o dizer, um protesto contra tudo e contra todos. Não temos nada contra o vento, a menos que ele seja bravo. O silêncio provoca habituamento, não tanto como a poesia.
Lá nas áfricas cospe-se no prato para não roubarem a comida. Fala-se para dentro porque é assim que nos entendemos melhor.
Os funerais são peritos em dizer silêncio. Alguém se ri do morto e é-lhe desejado o pavor.

Se o silêncio tivesse forma seria coisa menos coisa idêntica à silhueta de uma pomba: que voa, passeia e deita caca no chão.
A rapariga perdeu a virgindade e ganhou estatuto de mulher. Agora pode dizer ao mundo que está presente e que conhece a lei do prazer.
Viveu tantos anos a aprender a fórmula secreta do amadurecimento, desfolhando revistas e a excitar-se com homens musculados ao volante de jaguares. Cresceu a pensar que depois dos vinte encheria seu guarda-roupa com tudo do bom e do melhor, que as suas pulseiras seriam oferecidas em actos galanteios.

A rapariga não tem ponta de cabelo espigada. Cuida dele como um gato dedicado ao seu pêlo. Os seus peitos podem mostrar agora ao mundo que são grandes, que provocam burburinhos no café quando ela entra decidida. Quebra-se o silêncio com olhares de maladragem.

O cão esconde o osso na terra e vai a correr espreitar a rapariga que está a crescer atrás da fabrica antiga, com um homem em cima dela. Cresceu mais um segundo que daria para bater record à imaginação.
Pensa que aos trinta vai ser mais tenra que o animal que o caçador abateu e trás à cintura. Julga que a noite é um líquido que se dissolve numa camada de beijos e terá mais, Joãos, Josés, Aristides a desejarem-lhe. Que interpretação se pode dar ao silêncio quando apanhamos a nossa mãe nua a sair do chuveiro?

A rapariga vai fazer quarenta e sete anos no próximo mês e acha que a sua boca meteu-se um cêntimetro mais para dentro. Olha o seu corpo com desdém e fuma ganzas para embelezar o seu estado de alma.
Antes que venha a idade em que não conseguirá prender o chi-chi, antes que a zona dos olhos escureça e, decididamente, se pareçam com uma folha amarrotada, a rapariga decide casar-se com um marmelo que acabou de dar tropa e lá aprendeu a fazer guerra ao silêncio.
Era uma vez uma rapariga petulante que agora é uma mulher que voa, passeia e deita caca no chão.



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