Abro as gavetas da indiferença

Data 05/03/2007 17:13:23 | Tópico: Poemas -> Desilusão

Abro as gavetas da indiferença,
deixo que saiam sem resistência
os sonhos coloridos em dias de amor.
Deixo que se esfumem que se esbatam
no ar orvalho dos dias que começam.

Do cais onde procurei um barco,
um barco-porto de abrigo,
acolhimento, um ombro amigo,
do cais, só saem barcos feitos
de palavras em folhas de papel ...

Não saem navios, nem jangadas,
nem caravelas que voem sobre as
estrelas .... do mar ...

Deixo que as searas ondulem ao vento,
que as borboletas subam e deslizem
de vez na boca aberta do meu estômago ...

Não as retenho, que voem soltas
da agonia deste tempo em que te dei,
numa taça madrigal, cerejas, amoras
morangos, uvas moscatel;

Em que,
pela noite fora, sobre as estrelas
te ofereci o meu corpo desnudo
para que me abraçasses e dançássemos
unidos, fundidos, amantes,
o mais ousado tango antigo;

Destas noites em que me levaste em
sonhos, por pradarias sem fim,
a galope num cavalo branco,

desperto, enfim, na rudeza das
palavras ...
A pele esmaece num gesto final.

Liberto-me da escravidão das noites.
Abro os olhos, sinto de ti o punhal,
a falta do abraço,
a ausência do gesto que afaga a alma,
da concha - as mãos - que na doença,
não aparou as lágrimas,
a insensatez no trato,
a frieza,
o acto de julgar e julgar-se
maior, poeta maior...

E afinal ...
Ser poeta é ser “menor”,
é saber abrir o coração e as mãos ...
É amar sem condições, em palavras e actos.

Dói-me a alma, dói-me o corpo...

Recordo a canção:
“Veja bem, Vê se escuta o meu
grito de alerta ..."
Estou sózinha, não escutaste.
Sigo sobre vidros aguçados,
ombros carregados, sem
de ti ter um afago ...

Liberto-me,
finalmente da escravidão
das noites...
dos relógios sem quartos...
dos ponteiros analógicos que rodam
inversos aos sentimentos...

Não é este amor que busco,
não é deste fel que quero adoçar
a minha vida. Estou de partida ...
Mereço mais, mereço tudo ...
Que tudo te dei e tu renegas ...

Circula o néon.
O Sol desponta, ajusto a alma,
no ventre de um corpo quase morto...
A doença avança ... não me dá tréguas
tu não dás tréguas, és indiferente ...

Pego num pincel e pinto
numa tela branca, dois pontos...
Dois pontos negros ...
Num só ponto
FINAL.



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