maria teresa de jesus

Data 17/07/2008 22:34:00 | Tópico: Contos

um dia fechou a porta da rua e nunca mais a abriu. sentou-se no sofá com a cabeça entre os joelhos e olhando o chão pensou na elasticidade que ainda tinha. às vezes sabe bem fechar as portas ao que nos provoca dor, ainda ontem tanto ela como esta casa estavam prontas para receber quem viesse, hoje estão fechadas.
em dias de chuva costumava fustigar-se com chocolate quente, em dias de nevoeiro cobria-se com a manta bege que a avó lhe dera, em dias de geada aninhava-se junto à lareira e adormecia a ver o álbum de fotografias que guardava, religiosamente, em cima da mesa de sala, em dias de sol abria as janelas, as portas, os olhos, o seu coração e com sorrisos abria a própria boca, dias felizes. hoje esgotara qualquer possibilidade de crença, ou fé incondicional, nessa coisa estranha a que costumam chamar de vida.
não costumava brincar com crianças porque as achava patéticas, na verdade por vezes concordava com ela e até eu me limitava a olhá-las com ar de poucos - amigos, era “alérgica” a animais e por isso sempre mantive longe a possibilidade, mesmo que arbitrária, de convencê-la a aceitar o meu gato. e até nestas pequenas coisas, com as quais era difícil lidar, eu encontrava uma razão para amá-la, no entanto hoje não consigo olhá-la sem sentir pena, pena por ter fechado as portas da sua casa, do seu corpo, pena por não saber o que é ter um animal de estimação em casa, pena por nem sequer se aproximar de crianças, pena, só pena.
às vezes ligava-me a meio da noite com o medo da perda a tremelicar-lhe a voz, às vezes eu ria-me, outras vezes esperava que os soluços acabassem, que ela se acalmasse e voltasse a dormir, só desligava quando lhe sentia a respiração sossegada e não a ouvida responder-me. às vezes pendurava-se na varanda e fingia que se queria matar. às vezes eu sentia-a atirar-se mesmo que lhe não ouvisse o corpo contra o chão. às vezes chamava-me “meu amor” e eu sorria certo de estar contaminado pela mesma doença que ela. às vezes parava no meio da rua e gritava uma qualquer dor que nunca descobri de onde vinha.
trancava o passado nunca caixa de madeira, encardida pelo tempo, debaixo da cama. trancava-se no quarto sempre que a abria e trancava-se em casa sempre que eu fazia perguntas. sempre se habituou a trancar tudo o que a transportava aos lugares de antes.
um dia fechou a porta da rua e nunca mais a abriu. deixei de a ver, depois de a ouvir, até que desesperado a esperei, sentei-me na soleira da porta e esperei, como quem espera um abraço de um corpo inanimado, como quem espera uma resposta de uma boca morta.
era um tumor, um tumor. era uma doença qualquer que lhe vinha da infância quando pela primeira vez lhe enforcaram a vida com a sua boneca de trapos. e eu, pobre infeliz, só hoje lhe percebia a breve corcunda nas costas, só hoje , enquanto lhe agarrava a memória, me apercebi do peso que trazia às costas.
e da tua morte, minha pequena, nunca rezou a história.




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