Gabriela, escutas-me?

Data 19/07/2008 18:07:49 | Tópico: Contos

Gabriela,

Abre a varanda ao luar, Gabriela, está lua cheia lá fora como tu tanto gostas: bojuda, avermelhada, alaranjada, tal e qual tantas e tantas vezes, a cantaste… como dizias que a vias, que a sentias enorme a sobressaltar-se em ti…

Vem dai, meu amor, que a noite não espera por quem não ousa avançar…

Ouves-me minha querida? Escutas-me? Gabriela, hoje - não ontem, nem amanhã -, hoje, estou aqui e tenho para te oferecer a noite inteira e uma flor que ainda está por nascer. Vem dai Gabriela, anda entrançar os dedos nos meus, ouvir o ruído dos nossos passos colados na beira-rio, o coachar das rãs nos caniços, o marulhar das ondas no Bugio … fundir a seiva das nossas bocas uma última vez… uma última vez…. Uma primeira vez de um tempo novo, sei lá… Mas vem, Gabriela, por favor, não me deixes nesta ausência.
… Gabriela… Gabriela…

***

Passaram já tantos meses, tantos e tão intermináveis dias, que, em certos instantes me parece que já não recordo da forma exacta do teu corpo, do teu cheiro – cheiravas a amêndoas doces e a tangerinas, do que me lembro … -, a textura dulcíssima da pele da tua boca. E o teu olhar, Gabriela? Era duma ternura sem fim…

Existem momentos em que nem consigo asseverar se alguma vez te tive, se exististe em minha vida ou se a vida existiu em ti. Em mim …

As paredes descem agora sobre as minhas pernas, meu amor, esmagam-mas, amputam-mas. Trucidam-me as vontades secretas de dar um passo que seja… Como um íman, as paredes são o que me resta agora … As paredes, Gabriela, são uma espécie de sentinelas do que fomos, do que me recordo de termos sido, antes. Amantes… aqui!

Amei-te tanto, minha querida. Acho que nunca fui capaz de to dizer. Era como se a minha boca nunca encontrasse o jeito certo de pronunciar a palavra certa. Como se, autómato, me tivesse bloqueado a determinadas palavras… Como se, por as verbalizar, as desvirtuasse, as banalizasse …

Que estranha é a mente humana, Gabriela. Como nos retemos em ninharias e não somos capazes de ser quem somos. Na simplicidade de dizer “amor”, que seja. De pronunciar sem medo a força dum sentimento…
E, como agora gostaria de tas ter dito, minha querida. De, dizendo, ter visto o brilho de teu olhar…

Antes…

Depois vieram os teus desmaios, as tuas permanentes tonturas, os enjoos. Depois os médicos, os intermináveis, infindáveis, exames médicos, depois o veredicto final. Como uma bomba em nossas vidas. Tudo o que parecia forte e robusto se desmoronou. Pedra sob pedra. Como um castelo de cartas içado aos contrafortes do vento… e, o pior, Gabriela, o pior (se existe porventura pior coisa que não te poder neste instante segredar ao ouvido, “amo-te” …) foi o facto de que, quando partiste, não estava lá sequer. Não estava a teu lado. Não te pude abraçar, afagar os cabelos em meu colo como tanto gostavas, quando tos afagava e enrolava em meus dedos, nas nossas manhãs secretas …. Mimar-te infinitamente … “Mimo-te, Gabriela" …

Não havia espaço para mim… nunca existi na tua vida, meu amor, em boa verdade. Como tu, teoricamente, não exististe na minha. Teoricamente …

Não mais era que nº vagamente incógnito que surgia no visor do teu telemóvel, quando o não “abafavas” como te recomendava a brincar: - Gabriela, abafa o telemóvel … para que te possa contactar …

Não mais era que uma mensagem constante no teu Outlook e, acredito, um sentimento profundo a latejar-te permanentemente nas têmporas e, quem sabe, a mitigar-te as forças. Ou o que delas te restava …

Um sentimento que ocultaste de todos, o tempo todo. Será pecado amar, Gabriela? Não procurámos, não premeditámos … e, em rigor, não evitámos. E tudo faria de novo, Gabriela, se me fosse dada a ventura de o poder fazer. Com a única diferença de que jamais deixaria de te dizer milhões de vezes o que me fazias ser. O ser especial em que me tornava quando te sentia a pulsar enroscada no meu corpo… ou, simplesmente, quando o teu nº vagamente incógnito surgia no visor do meu telemóvel … E me fazia sentir adolescente, louco e desabrido, nos meus mais de sessenta anos … Adolescente!

Não Gabriela, também não me despedi de ti quando a terra engoliu o que restava do teu corpo, do corpo em que tantas e tantas vezes fui mais eu, mais gente, mais humano… onde redescobri o sentido de estar vivo, me descobri ávido de pequenas coisas, como um simples afago em minhas mãos, em minha face… ternuras pueris, meu amor, que já havia esquecido, desvalorizado, há tantos anos… Sabes, Gabriela, ensinaste-me que o amor não tem idade, nem estado, nem nação, nem lei outra que ele mesmo. E que subsiste a todas as catástrofes, até àquela que nos separou …

O que me resta de ti, minha querida, senão uma caixa cheia de mensagens, um milhão de mails que falam deste amor “invisível”? O que me resta senão este vazio a abarrotar de ti? Este sentimento de fragilidade em que me sustenho e a dimensão extraordinária da tua capacidade de luta? Minha querida …

Foram meses e meses de quimioterapia. Foram meses de combate pela sobrevivência.
Juntos no início, quando ainda acedias a este mundo virtual e, depois, quando já te era insuportável permanecer em pé, distantes. Tu a lutares na cama de um hospital e eu enjaulado na condição de “virtual” sem sequer poder saber de ti…

Gabriela escutas-me? Estou aqui, meu amor … A lua está lá fora, Gabriela, vem dai …



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