o que é puro é o sol que nos derrete

Data 19/07/2008 20:03:40 | Tópico: Contos

O coração dos homens pode ser feito de aço resistente, matéria bruta que misturada com água pode desmoronar-se. A pena, o ter pena é algo que Cristo inventou, assim como a dor transposta para outros dias.

Falar por palavras escritas é bem mais fácil do que dizer ao mundo que aqui vivemos. Os pedintes têm o acto de pedir como suas profissões. Até aqui tudo certo. Ensaiam uns ares tristes para arrecadar mais uns trocados.

A minha pena é não ter penas de galinha para saltar os muros. Um homem pode com outro homem às costas, mas quando quer. Olha ele ali a pedir, no chão desrespeitado, sem natureza, o seu cu na erva ferida, mãos erguidas a Deus.
- Tenho mulher e filhas em casa a precisar de uma bucha!

Pegue lá mais um dinheiro, senhor pedinte que amanhã posso precisar eu.
Outro sem braços, vestido com algodões quentes em dias verão. Dá pena vê-lo suar como um burro. Há quem o mande ir trabalhar.
- Vai trabalhar vadio!
O corpo habitua-se a estar sentado, numa posição de quem vai parir um animal sagrado, com olhos de marés vivas, pedindo, rogando aos santos que o valham.

O que é puro é o sol que nos derrete. A sombra vai-se com as horas e as horas vão-nos culpar de tudo isto. É a vingançazinha dos deuses por desrespeitarmos a humildade.

Pobre é um sorriso sem dentes. A filosofia advém da plebe. Porque é na pobreza que sentimos gota-a-gota a chuva que molha os campos que dará os frutos para as nossas mesas.
- Você tem cancro?

Se não tem, por que é que está a pedir?! Os pedintes só deviam de pedir quando estivessem na última, disseram.
Esperei que o pedinte se levantasse para se ir embora. Há muito que o observava na minha comiseração. Partiu. Sem dizer um obrigado geral aos que deixaram moeda no cesto de palha. Pegou na sua muleta, meteu-a na mão esquerda quando antes tinha chegado nela com a muleta na mão direita. Agora deve sofrer dos dois lados.
Coitado daquele que sofre dos dois lados!

Olhei o lugar vago, e decidi por uns minutos fazer a vez dele: ser pedinte por meia hora, apesar de ter todos os membros.
Não tinha cesto de palha mas não faz mal. Com a mão em concha fazia o mesmo efeito. Bem, passado doze minutos, segundo as contas do meu relógio da Cassio, já havia apurado qualquer coisa como oito euros.

Fiquei surpreendido. Oito euros ganharia eu a dar o litro na loja do Calisto a alombar ferro e cartão do camião para o armazém. Para quem é amador na área da pedincharia, nada mau.
Feito o balanço, deu para pagar os gastos diários mais um pequeno calote na tasca do Zé da Esquina.

Em casa deitei-me a dormir. Sinceramente não me lembro do que sonhei (com bruxas não foi porque essas como-as ao pequeno almoço com molhos bem picantes).
Foram tantas as horas que, quando acordei, fui de imediato ao largo do Senhor da Cruz para desanubiar a cabeça e, lá estava de novo o pedinte, com mais penosidade no olhar, quase a partir o pescoço pela inclinação, a tocar com o queixo no peito. Daria um bom retrato, sem dúvida.

A miséria dá o melhores ângulos para as máquinas fotográficas.
Pensei em partilhar a miséria com o homem, sentando-me ao lado dele, disfarçando uma penitência para o momento, ao mesmo tempo que cortaria um dedo, mas, como as coisas andam difíceis, a concorrência abrange todos os sectores (o que não dá para um não dá para repartir por dois), prefiri não me sentar e, deixei-o lá estar, a pedir às criaturas ambulantes que passam e nem um olhar de compaixão têm como esmola.

Afinal de contas existe tanta rua, tanta avenida, tanta porta de igreja, tanta feira, tanto sítio para aranjar um lugarzinho, um metro quadrado de terra, basta, para que possamos erguer nossas mãozinhas a Deus.

Um dia que deixem de dar esmolas ao pedinte, ele sabe que terá de cortar mais um dedo, e mais outro, depois um braço e mais outro, a seguir uma perna e depois um resto.
Até ficar em tocos. Porquê? Para que a pena dos homens não se esgote como o arroz do tacho do esfomeado! This is the end.






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