para que é que vieste ao mundo!

Data 20/07/2008 23:21:48 | Tópico: Contos

A rapariga mete-se dentro de uma caixa de vinte e cinco centimetros quadrados. Quando crescer continuará a caber dentro da mesma caixinha. Por isso treina diariamente o acto de encolher os ossos, a carne e o pensamento e, que bonito é vê-la dentro da caixinha de vidro!

O seu pai espera fazer muito dinheiro com a sua menina, que para já ainda tem oito.
- Há-de vir o dia em que a televisão ponha os olhos nesta rapariga. Ela é uma artista!

A menina é treinada de igual forma que um leão é dominado, quer virar-se para as bonecas mas, estás tola rapariga!, olha o teu futuro, ali, naquela caixinha de vidro. A tua ginástica será louvada. Os teus olhos a tocarem nos pés, a tua barriga colada às costas.
Faremos fortuna por este mundo.
Depois da escola, mete-se na caixinha, antes do almoço e do jantar, oupa para dentro da caixinha, as amiguinhas vão bater-lhe à porta, ela agora não pode atender porque está dentro da caixinha de vinte e cinco centimetros.
Vê-la ali é como assistir à desmontagem de um brinquedo quando está para arranjar.
O que importa é que por enquanto a rapariga sorri e, seu pai, sorri ainda mais por saber que dentro de poucos anos a sua menina será falada e invejada por tal proeza. Será o equivalente a quem dedica a sua vida em inventar um novo pôr-do-sol.

O tempo passa e não diz nada a ninguém.
Não há bilhetes de regresso, é sabido.
Amanhã a menina faz dezoito e tem os braços magrinhos e as pernas, dizem os amigos da escola que são palitos.
A canalha brinca mas no meio da brincadeira é o seu modo de dizer a verdade.
Seu pai tira-lhe grande parte da comida do prato
- Sabes que não podes comer o que te apetece, ou já te esqueceste para que é que vieste ao mundo!

Tem noites que a rapariga dorme dentro da caixinha sem dizer boa-noite a ninguém. Os seus dedos quase não seguram a caneta, a seu corpo consegue escapar-se pelo espaço entre grades de uma cela normal.

O seu pai diz que falta pouco para revelar ao mundo a sua capacidade única de ginástica. Entre o peito e as costas apenas uma pele fina (mortadela?!) os separa.
Ela hoje quase que não se levanta, está feita num molho de carne seca e ossos de pouca fartura. O pai sacode a rapariga para ela não adormecer no escuro da casa. Não responde porque o oco da boca secou.

O pai ordena que ela se meta na caixa senão ela nem sabe o que lhe pode acontecer. Volta a não responder. O pai vira costas de furioso.
A rapariga reage em último sacrilégio, virando-se para seu pai com uma minúscula gotinha de riso, dizendo-lhe:
- Pai,durante estes últimos anos, além de me conseguir meter dentro da caxinha de vidro, aprendi outro truque. Um truque que dará voz ao mudo, ao ver-me de espanto.

O pai dela sorriu como se um fantoche encontrasse o rumo da vida. Perguntando-lhe:
- Qual é? Mostra para mim, minha menininha!

A rapariga, que mal tempo teve de aprender como se beija um rapaz, levantou-se em pesada pena, abriu a janela, que mostrava o mar, e voou.

Pela primeira vez o seu pai chorou.
Enquanto espera o dia que em ela venha com as aves, vai treinando o seu filhote mais novo para que este um dia possa mostrar ao mundo que é capaz de partir vinte tijolos sobrepostos com a cabeça.



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