cinco minutos a ver o ponto em que estava o mar

Data 22/07/2008 14:31:51 | Tópico: Contos

- Chamem o relojoeiro que eu quero arranjar o coração!

Vamos lá parar com estas tretas! Está bem que o coração tiquetaqueteia, mas, consertá-lo como se muda um pneu de bicicleta!

A convicção por vezes vale vinte valores, pega um céu lá de cima e puxa-o para junto de nós. Quem sonha tem que investir. E quem não sonha perde uma grande aposta.
Em que ficamos?
Eu por mim deixo-o sonhar ou pertencer a esta história. Seria mais fácil ele dizer que queria ser cantor que, mesmo sem predestinação, arranjava-se uns contratos no bar do Xano. Pelo menos a malta ri. Que é o costume quando o barco oscila na areia da praia.
O mesmo dizer que o talento de alguns pode ser um ponto negro: aperta-se-lhe com os dois polegares e, resultado: sai porcaria.

Digo que o coração é uma pequena indústria, pois dentro dele entra a matéria-prima e sai o produto acabado. O sentimento é confundido com a cadência de uma música religiosa. Mas não é isso que vem na acta dos homens!

O sentimento é a aproximação dos astros. Algo masturbatório da alma. Espécie de rotunda com mil direções para ir.
Desculpem a interrupção, o que é que um relojoeiro entende de corações?
Como pode ele melhorar o aspecto, a funcionalidade deste pedaço de carne que no talho não vale nada?

Talvez seja a paciência do velho cuspindo sem medo nas pequenas peças em vez de óleos para melhor fazer girar.
Quem teima tem em falar alto tem sempre uma orelha que o vai escutar. Por muito estranha que seja a pergunta, alguém irá responder, com ou sem solução.

Um outro trouxe em viva pessoa um mestre na arte de afinar relógios de ouro, dedinhos que mexem e quase fazem acordar os objectos, dedos mais apurados que os do cego na leitura de um braile.

Chama-se senhor Antunes, homem de setenta, carregado mistério, nas covas dos seus olhos transporta uma santa Trindade. Aceitou a ousadia em pôr as suas mãos no coração avariado do tresloucado.

Uma mesa para o doente se deitar, foi só o que mestre pediu. O doente deitou-se, com o peito nu para cima.
O mestre foi à janela ver em que ponto estava o mar.
Cinco minutos a ver o ponto em que estava o mar. Esquisito. O mar sentiu que alguém o estava a observá-lo com uma convicção daquelas e, retraiu-se.

Após leitura às coisas vivas, dirigiu-se ao coração do homem e, com as mangas já dobradas, sem fazer qualquer corte na carne do doente, sem causar o mínimo de sangue, o mestre introduziu a sua mão direita no coração avariado.

Houve um grito inicial que se apagou assim que o mestre tocou no coração, sentido-lhe o fraco batimento, provocando corte na luz da salinha emprestada por um amigo de ambos, ficando tudo às escuras, excepto os olhos de azul fluorescente do mestre.

O silêncio transformou-se num metro quadrado de uma cela. O mestre apostava a sua delicadeza tal qual uma parteira ao receber a menina nos braços. Só poder rir depois de alcançar a criança. O velho tinha o coração do homem na mão, com ela metida dentro do corpo do tresloucado, como alguém que mete a mão dentro de água para medir a temperatura.

Começou por dar voltas ao coração, exactamente como se costuma fazer à corda de um relógio ou como faz a criança quando pega na boneca, põe-na de costas, e gira-lhe a corda até que ela comece a dançar e a dar música. Devia-lhe ter dado cerca de setecentas voltas ao coração.
Tantas que homem deitado na maca adormecera.

Os que assistiam a esta espécie de novo parto, duvidaram que o coitado sobrevivesse a tanta volta. O mestre voltou à janela para ver em que ponto estava mar.
Agora estava super bravio.
Como se uma Hiroshima explodisse dentro dele.

As pessoas preocuparam-se com a braveza do mar e foram-se embora antes de qualquer depois não há nada a fazer. O mestre e o demente ficaram sós. Veio a noite e com ela vieram os mistérios de que falam os poetas quando andam às voltas em si mesmos.

As catedrais deixam marcas onde ninguém as vê. Será dos sinos? Será das portas abertas? Do mofo? Da pedra fria? O homem está deitado na maca e tem um buraco no peito. Um buraco que só cabe uma mão. Não é igual ao buraco do meu quintal que o meu cão fez com as patas. É um sítio onde penetra o ar e circula sem ligar a prioridades.

Amanheceu.
O mar recebeu as crianças na praia com seu extenso pano líquido, bem brunido.
O velho ainda lá estava, intacto e mudo, na janela, interceptando telegramas vindos do espaço.

O outro, o demente, levantou-se e sorriu como se tivesse quinze anos. Desta vez sem marcas no queixo, sem a rijidez da barba mal aparada, sem ter de baixar as calças no café do Júlio para dizer que é louco.

Saiu à rua e não entendeu como é que as casas tinham mudado de lugar, as pessoas estavam meias tristes, ele perguntava e elas não respondiam, tocava nelas e elas não sentiam.

Reparou que ele, o não sei quem, tinha um aro espetado na cabeça e andava com os pés pelo ar. Mesmo assim sorriu. Porque o buraco ainda lá estava para quando quisesse dar corda necessária ao coração.



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