Na arte o que é deformado tem mais valor

Data 26/07/2008 12:48:49 | Tópico: Contos

A verdade não pode ser contada em soneto. Nem numa cantiga de amigo. A verdade é um sim ou não.

O humorista tem de estar preparado para rir, fazer de conta que, armar-se em pateta, coçar o pêlo do nariz, fazer o quatro e cair de cu, etc, mesmo que no dia anterior à sua representação, tenha levado um excerto de porrada por meia dúzia de ciganos. Nada contra os ciganos. Metaforismos.

Então é assim: o humorista assistiu a tudo: desde à rebentação das àguas até aos bebés nascerem. Dois: um menino e uma menina. Assim nesta ordem, sairam do ventre da mãe-preta. Que estava deitada numa banca de pedra fria, a parteira com suas mãos grossas por debaixo do lençol, banhado em sangue, os gritos de alguém que pisa uma mina e que nem pense levantar o pé!, a boca mordendo uma rodilha da cozinha, seus olhos lagartos meio cêntimetro fora dos côncavos.

O homem pega na mão dela, diz-lhe força, puxa, está quase, vá lá, tu consegues. As dores fazem pregas na alma, estalam a tinta das paredes.
Tudo é normal quando o ponteiro do relógio pára, ou quando a música acaba de repente e o dançarino ainda teria mais passos para dar.

Somos capazes de imitar vozes mas não somos capazes de distinguir em certas alturas o gemido do choro. Mãe-preta será depois de tudo uma canção de embalar.

Após amainar a forte batida do tambor, o menino saiu a chorar e mãe-preta sorriu. Dois minutos depois, a menina saiu calada e mãe-preta chorou.
E todos os que assistiam ao parto comparticiparam no choro.

Os médicos abanavam suas cabeças porque não viram na ecografia que a menina tinha os dedos colados uns aos outros. Mãos de peixe, catalogaram.
Dizer que outros já nasceram assim não tira a dor.

Haverá um país que os separe, mas para isso é preciso muita solidariedade, em caixas improvisadas, para colocar nos cafés da beira, e a fotografia da menina a cores, dizendo adeus com seus dedinhos de desenho animado.

Na arte, o que é deformado é o que tem mais valor. Na vida real é o contrário.

Todos ficaram tristes durante dias e dias, transferindo a menina daqui para acolá em busca de uma solução, excepto pai da criança que, para sobreviver, tinha de fazer rir as pessoas num bar até às duas da manhã,
de cara pintada e nariz vermelho,
enchendo o copo de wisky,
emborrachando-se,
caindo de queixos no chão,
gozando com Deus, e todo o público aplaudindo, mijando-se de riso, e a vida dentro de um cubo de gelo esperando que a alegria o faço derreter.



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