a estrada termina onde a solidão não teme

Data 28/07/2008 23:22:13 | Tópico: Contos

O vento agita as árvores, as árvores quebram seus ramos. Seus ramos quando ganham a velocidade da queda-livre tornam-se pesados.

Cá em baixo, na rua, vem um automóvel de passageiros: dois à frente e dois atrás.
Acordaram cedíssimo para preparar a merenda e para evitar o trânsito na via rápida.
Vão com destino a Fátima. Cada um fez uma cruz antes de se ligar o carro.

O sono das pessoas vai-se perdendo a cada quilómetro. O tempo não é obstáculo para a fé.
A chuva pouco importa.
Os vidros estão fechados, o desembaciador está ligado. A música é feita pelos que vão dentro do carro.
A respiração substitui a sofagem.
A dona Quinhas espera que o seu marido se endireite daquela vidinha que todos conhecem, com dúzias de orações ao pé da Nossa Senhora.

A dona Arminda com quatro velas quererá certamente ver-se livre do mal da figadeira que os médicos dizem não há nada a fazer. O condutor é pobre a pedir e pede apenas felicidade. A sua mulher, a dona Cândida, vai pelo passeio, embora o reumático lhe faça acreditar mais em milagres.

O vento agita as àrvores, as árvores inclinam-se mais não caem. Seus ramos agitados provocam ligeiras alucinações. O automóvel de três ou quatro toneladas é um brinquedo nas mãos da desgraça.
A trovoada é uma lâmpada quase a fundir. A estrada termina onde a solidão não teme. Todos rezam em uníssono apelo.
Deus está em áfrica. Se não está, devia de estar. Os terços nas mãos das mulheres ganham outra dimensão.
O medo é um bisturi apontado ao coração. A semente é a semente. Dez da manhã na IP5 não são dez da manhã no Cambodja. Mas o efeito é o mesmo.
Um morto aqui é um morto em todo o mundo. As notícias correm mais que um veleiro.
O sangue é um juiz de fora. A religião mete os pés debeixo da mesa. Três mulheres e um homem iam com destino de fé. Não chegaram lá porque um ramo grosso e mudo caiu. Furou a chapa do automóvel.
O condutor teve sorte graças a Deus. As mulheres, a ver vamos se a medicina tem tanta rapidez como o ramo que caiu. As contas do terço espalhadas no tablier. Mas não vale apena fazer contas.

Será que deixaram de sofrer de uma vez por todas? Onde está escrito que a dor é passageira? Por favor, não peças mais do que a felicidade. Já é tão alto o cerco que para lá das nuvens não vejo boi. Escuro. Escuridão.
De quem é a culpa? Ah, já sei! A culpa é do electricista. É sempre assim.




Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=45981