Filhos de um Deus demente

Data 31/07/2008 18:25:20 | Tópico: Textos -> Desilusão

A mãe olhava a criança entre os seus braços, inerte, as moscas que juntas faziam concorrência ao ruido de fundo do gerador, não paravam de lhe pairar como que reclamando já o seu festim nas equimoses que se perfilavam na pele perfurada pelos ossos. Os olhos desorbitados fixavam a mãe numa súplica surda, que cantava baixinho, numa voz doce, como só a voz da Mãe Negra sabe ser - "muchimá uélé, muchimá uélé, muchimááááá..." A melodia doce percorria o tecto da tenda enorme, côr da morte. Lá fora o vento árido que soprava o capim zumbia pelos buracos da tenda, o sol fazia a sua vigilia impiedosa esperando a sua hora de ser engolido pelo manto da noite negra.
De vez em quando chegava um choro numa tenda vizinha de uma ou outra criança que ainda tinha forças, sorte a dela - "muchima uélé..." cantava a Mãe Negra incapaz de se compadecer de si, a mão em leque abanou pela milésima vez outra mosca que teimosamente pairava na iris decolorida da criança também ela incapaz, sem forças de sentir auto-comiseração.
A bruma nocturna apoderou-se dos espaços que os raios impiedosos ocupavam. Outrora mesmo no escuro o sorriso da Mãe Negra com a idade da sua cria seria visivel e iluminaria uma alma. Mas a mãe negra não sorria... - "muchima uélé..."
O missionário entrou, acendeu um pequeno foco, iluminou o rosto da criança prostrada, de seguida o da mãe. O cruxifixo pendente do peito entre a sua mão num tique nervoso, reflectia no rosto todo o sofrimento que os seus olhos viam. Abanou a cabeça verticalmente em jeito de inquirição... Mãe Negra abanou os ombros, acto seguinte meneou a cabeça...e continuou - "muchima uélé..."



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