Migração

Data 07/08/2008 22:49:29 | Tópico: Poemas -> Sociais

1.

Em voo lentos,
as sombras ferem nostálgicas,
açoitam as flores sós.
O Outono teme o frio
e os campos murcham,
tornam-se amargos
os músculos,
cansados de serem apenas
o esgar de uma magra colheita
- que a dó ceifam
com ancinhos da idade.

Os homens ignoram a sementeira,
abandonam as trincheiras pobres
e partem no pólen do momento,
em busca da terra nova
... asfaltada de fatídicos destinos.
Tinham na carne
uma rosa-dos-ventos selvagem,
nos planaltos estendem-se
lençóis de lágrimas
no pranto de uma flor
que se despede em mimos de amante.
- o rumo é além.

2.

... Junto ao tempo
ficam os mais débeis
que a migração não anuiu, olvidados
até que sonâmbulos se trucidam
e morram!
Para trás, o silêncio crispado
na boca de um petiz
que grita baixinho
no aceno de uma sedução
numa oração sem anjos.

3.

Partem!
Sem brilho,
de olhar preso ao azul.
Agradecem aos céus
quanta ingratidão a terra deu
e no imo da noite,
Deus dormita-os em seus braços.

4.

À cidade chegam homens em cardume
como núvens fora da jaula
na peugada de um Sol cobarde.
Têm gravado nas faces,
sinais camponeses, da cor do centeio
que se ceifa com as mãos afiadas,
em epidermos de uma fome,
míngua voraz...

Vêm sedentos da sorte
que as colheitas lhes negaram
à idade...
trazem medos calados nas axilas,
suam-nos disfarçados.
Ladeando os corpos virgens,
as avenidas espantam os enamorados
com máscaras de cinismo
e maldades que são crime.

5.

Vêm de muito longe
na plena desarmonia
singelamente,
sem discursos nem oradores...

6.

Entretanto, nos campos
há mulheres plantando a vida,
como se homens fossem.
Pela matina chove,
as fêmeas saem à jorna
e suam no ventre
a subitez de um filho sem pai.
... pela brancura dos bosques
circulam algumas
lavrando outros dias
nas gaivas de um poço
que à sua porta nasceu,
onde antes era insónia vulgar.

7.

É a mão de uma mãe
quem fecunda os pardos verdes,
e torna grávidos os grãos
se sémen dormentes.

Na tribo contam-se os ausentes
à volta de um braseiro
que os mais pequenitos avivam de gemidos
ouvidos jorrar saudosos...
Ousados homens que não voltam
ao sorriso das crias
- são tabu sem tóten.

8.

... Mas a seara vingará sózinha,
entre o joio do Inverno
e o piar de uma criança
que hoje labuta o gesto
num desejo que anseia florir.
Um dia os trigais serão fiéis,
filhos do mesmo arado
em que souberam amar o fruto!

9.

Na maquinal geometria do tráfego
o vício do fácil habitar
continua cobrindo o sono
dos que chegam,
na senda de uma tradição
que se sabe mortal...
é o habitar sem dor,
ou o final de nada serem,
desilusão.

10.

Nos campos pobres,
os velhos falecem na idade,
e na citadina secura dos luares
os homens envelheçem mortos
no ruído da lembrança.
... nas mãos trémulas
uma foto de rostos molhados,
de tantas saudades chorar
o cheiro da terra pura
e o riso dos campos verves
onde um dia foram vivos!






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