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Data 19/08/2008 22:19:09 | Tópico: Crónicas

No meu tempo de faculdade pertenci, durante uns anos, à Associação de Estudantes. No primeiro ano em que fomos eleitos, tinha sido a equipa que estava de saída que reuniu os elementos da nova lista candidata, e que nos colocou, nos diversos departamentos, de acordo com as mais-valias que encontravam em cada um de nós.
A mim calhou-me o departamento pedagógico. Éramos três, eu, o Mário e a Maria. Praticamente ninguém se conhecia na nova direcção, e só na véspera das eleições é que tivemos oportunidade de estar juntos.
Quando nos tivemos que reunir a primeira vez começaram os problemas. Cada um falava para o seu lado e ninguém se entendia. Sai de lá a pensar que tinha feito uma tremenda duma asneira ao aceitar o convite. Mas, feliz ou infelizmente, não sou pessoa de desistir perante as contrariedades. Aos poucos fomos falando, eu e os outros elementos, e concluímos que se deveria dar espaço a que todos pudessem intervir, todas as opiniões deveriam ser ouvidas, até porque todas opiniões são importantes, antes de se tomar uma decisão e que, acima de tudo, éramos um grupo que se pretendia unido e coeso, donde, fora das reuniões deveríamos manter uma postura condizente com essa coesão. Optamos todos por seguir esta postura e, nos três anos que se seguiram, as reuniões passaram a ser produtivas.
No entanto, no departamento pedagógico as coisas não foram tão lineares. A primeira vez que nos reunimos apenas nós os três, eu e a Maria entramos em guerra aberta. Ambas com personalidade forte, com opiniões vincadas e dando pouca margem de manobra, sem admitir falhas (nem a nós, nem aos outros). Nenhuma de nós estava disposta a ceder uma vírgula nas suas convicções. E, naqueles primeiros meses de trabalho em equipa, a convicção duma seria, obrigatoriamente contrária à da outra – mesmo que as evidências apontassem numa só direcção.
O Mário, apanhado entre dois fogos, viu-se na contingência de meter, muitas vezes água na fervura. Não podia tomar partidos porque, se o fizesse, estaria condenado a enfurecer a outra. Se não tomava partido, então enfurecia as duas.
Confesso-vos que não foram momentos fácies. Para nenhum de nós os três.
Um mês depois das eleições já todos os departamentos da Associação se entendiam, e a equipa, na sua totalidade, entendia-se e funcionava. Nós os três destoávamos.
Naquela altura, e naquela faculdade, o departamento pedagógico da Associação de Estudantes tinha algum peso. Os calendários dos exames e frequências passavam por nós, as queixas dos professores eram canalizadas para nós decidirmos o que propor ao conselho pedagógico da faculdade… enfim, uma panóplia de tarefas que estavam suspensas por falta de entendimento entre mim e a Maria.
Num dia em que estávamos mais aguerridas e que o Mário já estava desesperado, ele decidiu, finalmente, tomar uma atitude. Sentou-nos às duas na sala de reuniões e fez-nos saber que estava farto das nossas birras. Que, duma vez por todas, tínhamos de perceber que os nossos dissentimentos não favoreciam ninguém, antes prejudicavam todo um universo de estudantes. Que tínhamos de aprender a ceder, porque não podíamos ter sempre razão. E ele não tinha mesmo paciência para estar a apagar os fogos que nós criávamos por estarmos sempre guerrear. E, portanto a solução era entendermo-nos as duas duma vez. Tanto nós como a AE como a faculdade teríamos a ganhar com isso.
Não sei se da forma como ele falou, se de nós já estarmos também cansadas das lutas diárias, ou do que foi, sei que resolvemos, ali mesmo, enterrar o machado de guerra, a bem duma causa maior – a faculdade e/ou os alunos.
Depois deste dia, e durante anos tive, na Maria, a melhor amiga que se pode desejar. Hoje em dia estamos mais afastadas, não porque queremos, mas porque a vida nos obrigou a isso. O Mário ganhou o seu lugar no meu coração. A lição que ele me deu, naquele dia, nunca mais foi esquecida.

* Os nomes são fictícios, mas a situação foi real.



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