o meu auto eu

Data 01/09/2008 11:15:22 | Tópico: Textos

eu sou um outono por vir, uma lareira acesa num dia de inverno que a geada domou, um poço plantado no quintal atrás da casa, o casaco pendurado no bengaleiro, a chávena de chá que espera à mesa, o canto das andorinhas em março, o toque dos tampores em romarias, o aconchego de um cobertor em dias de chuva, a janela onde gotas escorrem que se abre e fecha conforme as estações, o calo no pé a doer, a mão inchada pela má circulação, a dor nos ossos com a mudança de tempo, a mala que a senhora arrasta pelo chão, a peça de roupa a morrer no azulejo, os sapatos a sorrir sentados à porta de casa, a viola que ainda não saiu da loja, a aliança na mão da viúva, o pedaço de queijo que matou o rato no sótão, as calças que pela senhora ter emagrecido lhe ficam largas, uma garrafa vazia, o barco que adormece sobre as águas do lago, a voz dos mudos, o olhar das árvores, o grito da criança que não sabe onde está a mãe, a toca do coelho, a sombra onde muitos fazem piqueniques, o sorriso rasgado de quem não tem motivos para sorrir, o fado no rádio dos que conhecem portugal, a balança de cobre na loja ao virar da esquina, as estantes da biblioteca, a porta semicerrada da casa, o último aceno, as lágrimas que não te ensinaram a chorar, o adeus para sempre, a cadeira de encosto onde a velha balança o tempo, a mão que se ergue para pedir esmola, o barulho do carro a partir, o charco a meio da rua, a silva a florir na tapada, a encrusilhada que é casa de tantos acidentes, a manhã nos olhos dos que trabalham, o abraço que a mãe dá ao filho que regressa, a mesa da sala, o relógio no pulso do homem, o monte a esconder o sol, as meias de lã nos pés daquele que nunca andou, o cabelo preso na nuca, a ferida, a doença, a cura. eu sou.


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