Crónica de um só fôlego

Data 01/09/2008 15:46:17 | Tópico: Crónicas

Andei a monte na literatura para cima de vinte anos, ora, num cálculo rápido de fazer, resumindo: desde que me disseram que eu tinha jeito para a coisa, claro, para que eu não caísse nas malhas dos maus vicios e tal, já lá vão esses mesmo vinte anos em que, fora uma publicaçãozita num jornal da terra acerca do alcatrão da estrada que faz estragos nas viaturas, de resto, minhas crónicas amargas e doces vão-se apartando numa gaveta, até algum dia alguém vir dizer que sou bom moço, que não casei com a literatura por interesse e, como consequência, ver o meu nome, que poucas honras deu ao meus velhotes e que a bófia já suspeita do meu apelido, vê-lo em destaque numa montra de livraria juntamente com outros sucessos e, alguém por engano me topa, abre o meu livro numa página que até não é a melhor, já que falei dos contras e dos jogos súbtis dos maiorais, o leitor decide por iniciativa própria, mesmo enfrentando o dono da livraria em consequências de pauladas, rasga essa página que de certo modo só lá está porque tenho que preencher bem o formato A4 do livro, dado que editora me ameaçou com despejo literário, sem direitos a indeminazações, se acaso não escrevesse um bom calhamaço, e, em caligrafia egípcia, tive de escrever tudo o que me veio à cabeça, o que me veio aos joelhos e mais não digo porque sou bem educado e a educação está nos livros e os livros são para ser educados, ou vice-versa, inclusive, ter que documentar a época do cio das ostras, uma revolução qualquer nos balneários da equipa principal do Belenenses, fazer muitos mortos, muitos inocentes tombados, para mexer sensibilidades, fazer dos olhos das pessoas uvas mijonas, sem ter pesquisado coisa alguma, ao que nestes casos sou um alvo fácil por parte de associações que lutam pelo direitos das ostras, e a mandarem cartas ao director para que eu vá escrever para aquela banda indesejada que todos conhecem e eu, sem perceber que toco nos corações das pessoas, com a minha vocação herdada pelo meu tretavô e que ele ficaria feliz por me ver num palanque autografando livros de folhas amareladas, capas duras plastificadas, uma lombada de fazer inveja aos colegas do ofício, chegam-me com ameaças pelo telefone, duras ameaças que tenho medo de contar dadas as consequências que daí pode advir e eu não tenho idade para jogar boxe no meio da rua, porque ainda tenho presente a última vez que o fiz, sempre que vem a mudança de temperatura, fazendo uma chiada nos ossos que nem é bom lembrar se acaso a chiadeira aumentar e, como fraca soma, a minha crença cair quando estiver a fazer..., perder as manhãs a mudar o penso da alma, ou que pensa, isto de literatura tem as suas mazelas, ainda ontem dediquei um poema ao sol e queimei-me por dentro por tanto pensar nele, a puxar pelos abdómen, sem querer assinei um beijo à rapariga que todas as manhãs vai tomar o seu café e veio o noivo dela pedir contas ao meu soneto, escangalhando-o, entornando a chícara cheia de cafeína sobre a minha estimada bolsa de tiracolo que me dá um ar mais intelectual, disseram-me, e eu, indefeso, troquei a inércia pela raiva dando a correr como um maratonista perdido no percursso, sem saber onde é a meta, sem saber onde é a chegada, acabando por desaguar o meu corpo encharcado, com um fio de cheiro a velório a sair-me dos sovacos, num pântano impenetrável, ficando sozinho, a cumprir obrigações matrimoniais com a bicheza do mato que depressa me condecoraram de Rei de Portugal, já que nunca serei mais nada, aceitando o título, que ainda hoje o exibo pelas ruas em memória das vítimas da Literatura, e os que nunca editaram nem leram, quando eu passo na passarela dos anónimos, uns aplaudem, outros assobiam, enfim, tudo críticas que me vão garantindo que todos somos reis, uns mais, outros menos.



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