Poker de Dados (I)

Data 27/01/2009 22:50:35 | Tópico: Contos

Emudecido e vidrado na janela, toda ela ornada a chocolate, frutos secos e guloseimas e com cristais a fugirem ao olhar, embevecido estava o petiz de calças rasgadas por remendar e três berlindes para o tira-teimas, a cara pintada de engraxate e ele a pensar que bela montra aquela. Quem não se satisfazia, por lhe afastar a nata da freguesia, era o pasteleiro, gordo e foleiro, de verruga no nariz que se sobrepunha a um farto bigode mal aparado.
A neve contornava as ramas dos abetos e o frio cortante cobria de gelo os parapeitos das janelas, era um Inverno rigoroso como não se conhecia nas redondezas, o branco disfarçava nos tons azuis das faces dos transeuntes, mais visível no olhar triste do miúdo da montra da chocolateria.
Os passos apressados de Dezembro e o gosto colectivo e social pelo esquecimento e pela indiferença, começavam a transformar, aos poucos, aquela criança num boneco de neve com lágrimas congeladas ou desejos por alimentar. O ranger dos dentes competia com os assobios do vento que lhe afagava o cabelo nu e as gabardines dos alegres que passeavam por ali faziam-lhe ainda mais frio quando os olhava envergonhado de soslaio, não esquecendo que a vergonha deveria petencer a outros... os tais alegres transeuntes.
Do outro lado da rua vivia numa caixa de cartão um velhote septuagenário, que na sua juventude tinha sido enganado pela vida, a vida tinha-lhe negado a morte por inúmeras vezes. Ele olhava fixamente para o miúdo e começava a arrastar-se lentamente por entre a multidão que, atarefada com as últimas compras de Natal, o ia empurrando e pisando cegamente, era uma travessia dolorosa que empreendera e que procurava levar a bom termo. As buzinas dos luxuosos carros e dos táxis inundavam o ambiente da cidade, os seus fumos poluidores davam-lhe um aspecto decrépito e impessoal, as pessoas insistiam em não se conhecer e recusavam a vida em sociedade, como humanamente seria espectável. O miúdo continuava por ali, livre dos dramas de cada um, despreocupado com o que se passava em seu redor, com a crise disfarçada em sorrisos cínicos dos agiotas que prostituiam o seu próprio dinheiro, fazendo-o circular entre si, de luva em luva. O mundo estava à beira do abismo e a sociedade procurava sempre dar passos em frente numa tradição suicida.
O Sol por vezes espreitava por entre os fumos e chorava raios de luz que, por entre a multidão desenfreada, procuravam atingir o septuagenário, para o guiar na sua demanda, e o pequeno boneco de neve que ali nascia, para que, pelo menos, derretesse um pouco. Mas o Inverno insistia em não perdoar e, rigoroso como se mostrava, forçava até os grossos casacos de peles de animais raros, alguns se calhar já extintos. O mesmo Inverno que tinha tomado para si os corpos das tropas de Napoleão e, mais tarde, de Hitler, arrastava-se pelas ruas para reclamar os menos afortunados, aqueles que outros quiseram esquecer quando deixaram de ter uso para eles, os Homens descartáveis.


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