O salto

Data 20/09/2008 10:59:55 | Tópico: Textos

Foi naquele dia mas bem podería ter sido num outro qualquer.
Não teve contratempos ou noticia feliz que o fizessem sobressaltar para que o mecanismo se activasse e como uma mola oleada, disparasse o projéctil ou iniciasse a contagem decrescente da bomba-relógio.
Não sentiu nada em especial que o movesse ou alterasse no seu intimo, tão pouco visões de alucinado ou a revelação de um santo desconhecido.
Quando se abeirou da janela, um pardal voou lesto.
Seguiu-o com o olhar até o perder no verde da cabeleira frondosa da árvore defronte ao edificio onde morava: examinou com muita atenção as ramadas tentando descobrir onde a ave se escondera, mas ao fim de algum tempo a pesquisa deu em nada e desistiu.
Olhou para o passeio lá em baixo e notou uma perna de uma mulher a saír de dentro do carro qua acabara de estacionar; depois o braço esquerdo a desvendar-se a compasso da perna e por fim o topo da cabeça, amarela, quase brilhando de tanto louro.
Pensou para si que estranho era, saber assim e desta forma, quase incompleta, que se tratava de uma mulher...
Depois viu-a entrar no prédio contiguo ao seu. Imaginou-a a aparecer pelas suas costas, dentro do seu quarto, poisar a mão e o braço que vira, no seu ombro; Talvez ele cheirasse e beijasse até aquele cocoruto louro brilhante se ela encostasse a cabeça ao peito dele.
Ficou um pouco à espera. Chegou mesmo a pensar que ouvira o som metálico das chaves a abrirem a porta, o tacão alto enfeitando a perna de gémeo redondo martelando a sua chegada. Fechou os olhos ao de leve na expectativa da presença próxima mas ao fim de algum tempo a espera deu em nada e desistiu.
Passou as pernas para o lado de fora e ficou sentado no parapeito, as mãos ladeando o corpo como duas colunas. Debruçou-se um pouco à frente e avistou a biqueira castanha dos seus sapatos. Achou que não estava certo ter assim a liberdade sem chão e calçado.
Tirou os sapatos e as meias e sentiu-se bem quando o ar se entrelaçou nos dedos dos pés, rodeou os tornozelos, volteou até ao torso e o surpreendeu num afago junto ao pescoço e orelhas e ainda na nuca.
Sorriu.
E deixou-se deslizar para fora daquele parapeito, daquele edificio, daquela vida de calçado apertado à procura de pardais livres e de metades de mulheres como adivinhas.



Este texto vem de Luso-Poemas
https://www.luso-poemas.net

Pode visualizá-lo seguindo este link:
https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=53490