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Data 23/10/2008 09:45:17 | Tópico: Textos

estacionou o carro à porta do 47, saiu com o passo travado pela saia que lhe dava pelo joelho, sorriu um pouco quando o casaco ficou preso na porta do carro. estavas sentado, tu, à porta do jardim com as mãos presas entre as heras da cerca e não deste conta do seu regresso. estavas com os olhos presos no que ela fora, mulher, mãe, senhora, para sempre. não quiseste ouvir o barulho das rodas do carro contra o asfalto, cada vez mais perto, cada vez mais dorido. tu não a amas. entrou em casa apressada, queria ver-te, correr para ti como sempre tinha sonhado, no bolso do casaco algumas fotos de um casal feliz que há muito tinha morrido. tu empurravas agora o baloiço com o corpo, alguns patos adormecidos no lago levantavam-se e vinham ao teu encontro, em fila indiana, talvez esperassem um abraço ou algumas migalhas de pão. tu nem sequer a olhaste quando ela entrou no jardim e a voz se abriu num abraço que não querias. envolveu-te com os braços postos num desassossego continental, segredou-te alguns nuncas e muitos sempres, amor eterno. tu choraste como um desalmado, sempre choras como um desalmado quando a tens perto, nunca soubeste porquê. se a amas ninguém sabe, nem tu, nem ela, tanto quanto julgas queres os corpos longe, como o carro longe, na estrada longe. não és feliz e a alma pesa-te mais no corpo com os braços voltados para sul.


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