Não mais águas claras

Data 18/04/2007 13:30:33 | Tópico: Poemas -> Sombrios

Não mais águas claras
se escorreriam em melodias harmónicas
no cantar de si, agora pétrea.

Nem os seus olhos seriam prismas de luz,
caleidoscópios, vitrais, brilhos de outras estradas.
Nem o seu corpo seria barco no alto mar
a deslizar, à deriva sem mastro,
sem astrolábio e sem bússola, à luz enganosa
de uma corrente difusa ...

Nem a verdade da palavra se elevaria,
erva daninha, para além do espaço de um só grito.
Não mais os gestos seriam amplos, campos abertos,
o coração franco, intacto, branco igualado aos líricos,
aos trovadores, salvadores da Pátria.
E aos singelos lírios do campo. (Delirava)

Que das suas mãos cresciam agora leais silvados,
e no seu corpo haviam reservado espaços,
as larvas, as minhocas, as lombrigas enfim,
os vermes mais nojentos e banais ...

Não, não iria dar-se inteira como dantes, como sempre,
ao fulgor do amor, à emoção de partilhar a paixão,
e quedar-se estrangulada
numa rede vil da mais altaneira solidão.

Daria de si, o menos que a metade e o restante
talvez o desse à mais obscura putrefacção.
Não mais águas claras ... nas escuras madrugadas.
Fechou os olhos, fechou o livro de tão cansada!
Soprou-lhe a face o vento. Esvoaçou-se lívida,
semimorta, semiviva, na ousadia do verbo,
na alquimia da palavra!



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