Receita da Felicidade

Data 03/11/2008 08:46:09 | Tópico: Contos -> Natal

O jantar decorreu numa atmosfera informal de grande encanto. Francisco chegou cedo e a sua aparição foi saboreada como uma brisa de Setembro. Bernardo começou logo a montar o Playmobil, e Francisco foi à cozinha pôr a gelar o Moet. A sugestão de esparguete à bolonhesa foi aceite por unanimidade. Bernardo repetiu as farófias.
- Cheira a Natal, mãe!
Cecília sorriu e elucidou Francisco:
- Sempre que usamos canela, ele diz isso. Mas, por acaso até já falta pouco para o Natal. Quando é que é a festa da escola?
Foi Francisco quem soube responder:
- Dia dezoito. O meu filho vai de pastor. E tu, Bernardo?
Bernardo ainda não sabia. Porém, sabia que haveria surpresas. Até o Tiago já tinha inventado que a professora Dália ia vestida de rena. Cecília trocou com Francisco um olhar cúmplice.
Afinal, a professora Dália não foi vestida de rena, mas a solene monumentalidade das pregas do seu vestido verde esmaltado não passou despercebida. Bernardo já tinha recitado a sua quadra sem atrapalhação e regressado para junto da mãe. Todos, enfim, aguardavam pelo discurso natalício da professora Dália. Apesar da rigidez do seu aspecto, esta assumiu uma atitude maternal na divulgação do concurso "Receita da Felicidade". Embora com poucos recursos, a escola tentava todos os anos satisfazer o maior desejo de Natal dos seus alunos. Bernardo nem quis acreditar quando ouviu o seu nome. Cecília e Francisco beijaram-lhe a face, e ele dirigiu-se ao palco. A professora Dália pediu uma salva de palmas para o representante da Câmara Municipal que apoiara o projecto. Ao menino Bernardo, por este ser alegre, meigo e responsável, nas palavras da mãe, seria entregue para adopção um gatinho do Gatil Municipal. Bernardo olhou a mãe aflito, puxou pelo braço da professora Dália e perguntou baixinho:
- E se a minha mãe não deixar?
A professora Dália sorriu e disse:
- Deixa, deixa...
E, então, a professora Dália agradeceu a colaboração dos pais por terem mantido em sigilo todo o processo, desde o mês de Outubro quando foram convocados à escola para assinarem um termo de responsabilidade ou darem o seu consentimento para a realização do projecto. O representante da Câmara proferiu umas breves palavras para enaltecer o acto de generosidade que é a adopção de um animal abandonado e entregou a Bernardo um cheque de cento e cinquenta euros para assegurar os cuidados do animal. Bernardo estava eufórico.
À saída, compraram o número especial de Natal do jornal da escola e, nessa mesma tarde, passaram no Gatil. Num tom académico, o veterinário foi dando indicações sobre os cuidados básicos a ter com o animal, enquanto prosseguia pelos corredores em direcção às boxes. Cecília manifestou uma melancólica sensibilidade perante a natureza em abandono ao comover-se com aquelas figuras magras, alongando-se em posições harmoniosas, numa vida sem contentamento. Uns de manchas claras e de olhos verde líquido, outros de pelagem escura a realçar ainda mais a luz dos seus olhos assanhados como malaguetas ferozes. Face a tal diversidade, os sentimentos cedem e confundem-se. O entusiasmo de Bernardo conduziu-o até um gatinho cuja mestria de negros e cinzentos do pêlo o fazia assemelhar-se a areia basáltica batida por uma nortada.
Francisco admirou a primavera que se demorava naqueles olhos felinos e sentiu-se invadido por um sabor de paz doméstica. Entretanto, já lera a receita da felicidade de Bernardo, impressa no jornal da escola: "Num tapete, ponha arranhões, marradinhas, ronrons e uma pitada de cócegas de bigodes. Junte o carinho e a ternura, bem peneirados e misturados. Mexa muito bem com os dedos até se tornar uma bola. Tire do tapete e deite no sofá, mexendo sempre até o desatino ser total. Ao primeiro bocejo, deixe repousar. Acompanhe com dois berlindes esverdeados e muita preguiça."


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