29º foto - Ladislau e as estrelas da Guiné

Data 04/11/2008 22:30:10 | Tópico: Textos

Lá para o sul não se via nada, a norte também não e, nem para os outros lados havia qualquer vislumbre do que quer que fosse. Desorientação, uma desorientação absoluta com sabor de inércia... inépcia. Sentou-se e aconchegou as bochechas ausentes nas palmas das mãos, numa espera por nada que afligia.
Ladislau, homem que viera de terras da Guiné, era uma pessoa afável, simples e ingénua, assim como são todos os naturais. Viera para a Europa há alguns dias, à boleia da procura de qualquer coisa que não se sabe bem o que é. Qualquer coisa melhor... ou talvez, qualquer coisa que parecesse melhor.
O olhar perdeu-se com facilidade. Nunca vira deserto tão grande, árido e sem uma referência que lhe dissesse "vai por ali". Uma enorme ausência com um mar de gente, branco, frio e de cimento. Restavam-lhe as estrelas e essas só vinham de noite.
É tão bom olhar para as estrelas e contá-las. O avô tinha-lhe ensinado a contar estrelas. "Nunca apontes para elas. Por cada uma que apontares cresce-te um cravo nas mãos. Conta-as, se fores capaz, só com o olhar.". O Ladislau cumpria. Não era coisa que quisesse, essa de ter as mão cheias de cravos, afinal, as estrelas são tantas.
Esperou sentado no poial junto a uma porta feia. Encostada às suas costas a porta soltava lascas de tinta verde já encarquilhada. Fechou os olhos por momentos e regressou ao chão quente, cor de tijolo das ruas da terra que o deixou nascer. Os briquedos raros, feitos de arame e de rodas de madeira, os aros de bicicleta nús e empenados a correr à velocidade dos pedais e o cheiro da pasta de farinha cozinhada no fogo era sedutor quando havia. Guiné. Parecia tudo tão pouco lá e a agora, de cá, parece tudo tão bom.
Acordou daquele sono que não era de dormir e as estrelas lá estavam. Mas... todas tão presas, o céu estava todo num quadrado. Como podia ser? Como é que tinham conseguido prendê-lo? Até se conseguia contar a estrelas todas. Este mundo não está certo.
Está frio. Está tanto que nem os que por ali andam olham alguém nos olhos. Todos olham para o chão. Pois. Então seria por isso que as estrelas estavam presas? Talvez fosse por isso, para não terem que as procurar quando conseguissem levantar os olhos. Lá na Guiné, nem o chão é preto, nem as gentes olham para os pés, nem nunca está frio, as estrelas livres abeiram-se dos gaiatos e, no fim, todos pensam que no norte é que é tudo bom. Engano. Engano. O bijagó sabia-o agora.
Ladislau, que até fora um puto feliz, percebeu que a magia de imaginar coisas melhores lá longe pode não passar de um feitiço que prende a liberdade.
Está frio e as estrelas presas não sabem caminhos.

Valdevinoxis




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